quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 9

Quando eu entrei no Rambler no fim do dia, Mestre estava todo agitado. - Está todo mundo comentando! - gritou, pulan¬do no assento. - Todo mundo viu! Você salvou a vida daque¬le cara! Você salvou a vida do Bryce Martinson!
Eu não salvei a vida de ninguém - retruquei, ajeitan¬do calmamente o espelho retrovisor para dar uma olhada nos cabelos. Jóia. O ar salgado definitivamente me faz bem.
Salvou sim. Eu vi aquela tora de madeira. Se tivesse caído na cabeça dele, estava morto! Você o salvou, Suze! Pode crer que salvou.
Bem - disse eu, passando brilho nos lábios. - Talvez.
Caramba, você só foi ao colégio um dia e já é a garo¬ta mais popular da área!
Mestre não conseguia mesmo se conter. Às vezes eu fica¬va pensando se um Lexotan não seria uma boa. Não que eu não gostasse dele. Na realidade, era o filho do Andy de que eu gostava mais - o que no fundo não quer dizer mui¬ta coisa, mas é o melhor que posso dizer. Mestre é que chega¬ra para mim na noite da véspera, quando eu estava ten¬tando decidir o que vestiria no primeiro dia de aula, e me perguntara, muito pálido, se eu tinha certeza que não que¬ria trocar de quarto com ele.
Fiquei olhando para ele como se ele estivesse maluco. Seu quarto era bem legal, e tudo mais, mas espera aí. Desistir do meu próprio banheiro e da vista para o mar? Nem pen¬sar. Nem que isso significasse que eu estaria me livrando do meu incômodo companheiro de quarto, o Jesse, que na realidade não tinha voltado a aparecer desde que eu o ti¬nha mandado passear.
- Por que diabos eu haveria de querer trocar o meu quar¬to? - perguntei.
Mestre deu de ombros.
-É que... é que este quarto aqui é meio horripilante, não acha não?
Fiquei olhando para ele. Vocês deviam ver como o meu quarto estava. Com o abajur da mesinha-de-cabeceira ace¬so, envolvendo tudo numa maravilhosa luz rosada, e o meu CD player tocando Janet Jackson - tão alto que duas vezes minha mãe tinha gritado para eu abaixar -, hor¬ripilante era a última coisa que alguém diria sobre o meu quarto.
- Horripilante? - repeti, olhando ao redor. Nenhum sinal do Jesse. Nenhum sinal de nada anormal. Estávamos perfeitamente instalados no reino dos seres vivos. - O que tem de horripilante aqui? Mestre franziu a boca.
- Não diga nada ao papai - explicou então -, mas tenho andado um bocado por aí pesquisando esta casa, e cheguei à conclusão, sem sombra de dúvida, de que ela é mal-assombrada.
Fiquei olhando para sua carinha sardenta, e vi que ele estava falando sério. Muito sério, como deixou claro o seu comentário seguinte.
- Embora a maioria dos cientistas tenha descartado quase todas as alegações de casos de atividades paranormais no país, persistem muitos indícios de fenômenos espectrais acontecendo no mundo sem explicação. Minha investi¬gação aqui em casa ficou a desejar em matéria de indícios considerados tradicionais de presença de espíritos, como os chamados pontos frios. Mas ainda assim, Suze, ficou perfei¬tamente evidente a variação de temperatura neste quarto, levando-me a concluir que provavelmente houve aqui pelo menos um caso de grande violência, talvez até um assassi¬nato, e que alguns remanescentes da vítima (que você pode chamar de alma, se quiser) ainda estão por aqui, talvez na vã esperança de conseguir justiça para sua morte violenta.
Eu me recostei numa das colunas da minha cama. Caso contrário, poderia ter caído.
- Caramba - disse, fazendo força para manter a voz normal. - Impossível fazer uma garota se sentir mais bem- vinda.
Mestre ficou meio embaraçado.
- Lamento - disse ele, com a ponta das orelhas ficando vermelha. - Não devia ter dito nada. Falei sobre isto com o Jake e o Brad e eles disseram que eu estava maluco. Talvez esteja mesmo. - E depois de engolir em seco, tomando coragem: - Mas considero meu dever, como homem, me ofe¬recer para trocar de quarto com você. Como vê, não estou com medo.
Eu sorri para ele, esquecendo completamente meu choque numa súbita onda de afeto. Fiquei realmente sensi¬bilizada. Dava para ver que o carinha tinha precisado reu¬nir toda a coragem para fazer aquela proposta. Ele realmente estava convencido de que o meu quarto era mal-assombrado, apesar de tudo que a ciência lhe dizia e no entanto se mostrava disposto a se sacrificar por minha causa, por puro cavalheirismo. Impossível não gostar do carinha. Impossível mesmo.
- Beleza, Mestre - disse eu, esquecendo completamente de tudo, numa onda de sentimentalismo, e chamando-o pelo apelido que inventara para ele. - Acho que seria perfei¬tamente capaz de enfrentar qualquer fenômeno paranormal que viesse a ocorrer aqui.
Ele não pareceu se importar com o apelido. Evidente¬mente aliviado, disse:
Bom, se você realmente não se importa...
Não, está tudo bem. Mas queria te perguntar uma coisa - continuei, abaixando a voz, para o caso de o Jesse estar em algum lugar por ali. - Nessas suas pesquisas, em algum momento você ficou sabendo o nome desse pobre coitado cuja alma estaria vagando pelo meu quarto? Mestre sacudiu a cabeça.
- Se você quiser realmente, posso conseguir para você. Posso dar uma olhada na biblioteca. Eles têm lá todos os jornais que foram publicados aqui na região desde que começou a imprensa local, pouco antes da construção desta casa. Está tudo em microfilmes, e tenho certeza de que se ficar algum tempo dando uma olhada...
A coisa me parecia meio absurda, um garoto passando o tempo todo numa biblioteca bolorenta vendo micro¬filmes, com uma praia daquelas a dois quarteirões dali. Mas cada um na sua, certo?
- Beleza - foi tudo que consegui dizer.
Agora eu estava vendo que o fraco que o Mestre tinha por mim ameaçava adquirir dimensões completamente des¬proporcionais. Primeiro eu tinha me prontificado a viver num quarto que segundo diziam podia ser mal-assombrado, depois tinha salvado a vida de Bryce Martinson. E depois, que grande façanha me esperava? Correr os cem metros ra¬sos em 10s04?
- Veja bem - disse eu, enquanto Soneca pelejava com a ignição, que aparentemente tinha uma certa tendência a não funcionar na primeira tentativa. - Eu fiz apenas o que qualquer um de vocês teria feito se estivesse lá.
- O Brad estava lá e não fez nada - atalhou Mestre. Dunga interferiu:
- Corta essa, eu não vi nenhuma droga de viga, está bem?
Se tivesse visto, também teria empurrado ele dali. Minha nossa!
- Tudo bem, mas você não viu. Provavelmente estava ocupado demais olhando para Kelly Prescott.
Dizendo isto, Mestre levou um belo safanão no braço:
Fecha essa matraca, David - disse o Dunga. - Você não sabe do que está falando.
Cala a boca todo mundo! - cortou o Soneca, num raro acesso de mau humor. - Nunca vou conseguir tirar este carro do lugar se vocês continuarem me atrapalhando desse jeito. Brad, pare de bater no David, David, pare de gritar no meu ouvido, e Suze, se você não tirar este seu cabeção aí do espelho nunca vou conseguir ver para onde estamos indo. Vou te contar, mal posso ver a hora de botar minhas mãos naquele Camaro!
Foi depois do jantar que o telefone tocou. Minha mãe teve de berrar lá de baixo porque eu estava com meus fones de ouvido. Embora ainda fosse o primeiro dia do novo se¬mestre, eu já tinha um bocado de dever de casa para fazer, sobretudo de geometria. Na minha antiga escola nós só tínhamos chegado ao capítulo sete. Os segundanistas da Academia da Missão já estavam no capítulo doze. E eu sabia que estaria acabada se não começasse a recuperar o atraso.
Quando desci para atender o telefone, minha mãe já estava tão furiosa comigo por ter precisado gritar - o trabalho dela exige que cuide muito bem das cordas vocais - que nem quis dizer quem era. Eu peguei o telefone e disse alô.
Houve uma pausa, e eu ouvi a voz do padre Dominic.
- Alô? Suzannah? É você? Desculpe incomodá-la em casa, mas estive pensando muito, e realmente estou achando... eu cheguei à conclusão de que precisamos fazer alguma coisa imediatamente. Não consigo parar de pensar no que teria acontecido ao pobre Bryce se você não estivesse lá.
Eu olhei para os lados. O Dunga estava jogando Cool Boarders (com o pai, a única pessoa na casa que deixava ele ganhar), minha mãe estava trabalhando no computador, Soneca tinha saído para substituir um entregador de pizza que estava doente e Mestre estava na mesa da sala de jan¬tar trabalhando num projeto de ciências que só teria de apre¬sentar em abril.
Hmm - disse eu. - Olha só, realmente não vou poder falar agora.
Entendo - disse o padre Dom. - E não se preocupe, quem fez a chamada atendida pela sua mãe foi uma das noviças. Sua mãe está achando que foi uma nova amiguinha sua da escola. Mas o fato, Suzannah, é que precisamos fazer alguma coisa, de preferência esta noite...
Olha - respondi. - Não se preocupe. Está tudo sob controle.
Padre Dom pareceu surpreso.
Está mesmo? Tem certeza? Como? Como você está conseguindo manter a coisa sob controle?
Não tem importância. Mas eu já fiz isto antes. Tudo vai dar certo, prometo.
- Ora, está bem, é ótimo prometer que tudo vai dar certo , mas eu já a vi em ação, Suzannah, e não posso dizer que fiquei muito bem impressionado com o seu método. Daqui a um mês o arcebispo estará chegando, e realmente eu não posso...
O telefone sinalizou que havia outra chamada, eu pedi que ele esperasse um minutinho, apertei o botão e disse:
Casa dos Ackerman Simon.
Suze? - disse uma voz de garoto, que eu não reconheci.
Sim...
Oi, tudo bem? É o Bryce. Então. Qual é a boa?
Eu olhei para minha mãe. Estava com a cara completa¬mente enfiada na reportagem em que estava trabalhando.
- Hmm - disse eu -, nada demais. Pode esperar só um pouquinho, Bryce? Estou com uma pessoa na outra linha.
- Claro - respondeu ele. Voltei para o padre Dominic.
- Então - retomei, com cuidado para não dizer alto o seu nome. - Agora preciso ir. Minha mãe está esperando uma chamada muito importante na outra linha. Um senador. Um senador muito importante.
Eu provavelmente iria para o inferno por causa disto - se é que existe este lugar -, mas não podia dizer a verdade ao padre Dominic: que eu ia sair com o ex-namorado do fantasma.
Ora, mas é claro - disse padre Dominic. - Eu... bem, se você tiver um plano...
Tenho sim. Não se preocupe. Nada vai estragar a visita do arcebispo. Prometo. Tchau - e desliguei, voltando para o Bryce: - Oi, desculpe... E aí?
Nada, não. Eu estava só pensando em você. Que vai querer fazer no sábado? Quer dizer... quer sair para jantar, ir a um cinema, ou quem sabe as duas coisas? A outra linha acendeu. Respondi:
- Bryce, eu sinto muito realmente, mas a casa aqui está uma zona... Pode esperar um minutinho? Obrigada. Alô? Uma voz de garota que eu nunca tinha ouvido disse: Oi, tudo bem? É a Suze?
- Falando - eu disse.
- Oi, Suzinha, é a Kelly. Kelly Prescott, da sua classe. Só queria te dizer... aquilo que você fez hoje pelo Bryce... foi muito legal. Puxa, nunca vi tanta coragem na minha vida! Deviam abrir manchete para você no jornal, no mínimo. Vou reunir uns amigos em casa neste sábado, nada de mais, só uma festinha na piscina, o pessoal lá de casa vai viajar no fim de semana, e a piscina é aquecida, claro... Então fiquei achando que se você quisesse, poderia aparecer...
Fiquei ali segurando o telefone, completamente abestalhada. Kelly Prescott, a garota mais rica e mais bonita da segunda série, estava me convidando para uma festa na piscina na mesma noite em que eu tinha um encontro com o garoto mais sexy da escola. Que ainda por cima estava na outra linha.
Puxa, Kelly, claro - respondi. - Eu adoraria. O Brad sabe onde fica?
Brad? - fez a Kelly, logo emendando: - Ah, o Brad! Claro, ele é seu meio-irmão ou algo assim, certo? Isso mesmo, traz ele também. Mas, olha...
Adoraria ficar conversando, Kelly, mas estou com uma pessoa na outra linha. Podemos conversar sobre isto ama¬nhã no colégio?
Claro, sem problema. Tchauzinho.
Apertei de novo o botão do Bryce, pedi que esperasse mais um pouquinho, tampei o bocal do fone com a mão e gritei:
- Brad, festa na piscina da casa daí Kelly Prescott neste sábado. Se não for, eu te mato.
Dunga largou o controle remoto.
- Nem pensar! - berrou, exultante. - O cacete que eu não vou!
Andy aplicou-lhe um cascudo.
- Olha a linguagem!
Eu voltei a falar com o Bryce.
-Jantar seria genial - disse. - Qualquer coisa, menos co¬mida natureba.
Ótimo! - fez ele. - Isso mesmo, eu também odeio co¬mida natural. Não tem nada igual a um bom pedaço de carne, com umas fritas e um bom molho...
Beleza, Bryce. Desculpe, mas é aquela outra chamada de novo, lamento mesmo mas vou ter de ir, tá bom? Falo com você amanhã no colégio.
OK, tudo bem - concordou Bryce, mas parecendo surpreso. Aposto que eu era a primeira garota que se preocupa¬va em atender a outra linha durante um telefonema dele. - Tchau, Suze. E obrigado de novo.
Sem problema. Disponha - e desliguei, atendendo à outra ligação.
- Suze? É Cee Cee!
No fundo, ouvi o Adam gritando: - E eu também!
- E aí, garota? - foi dizendo a Cee Cee. - Estamos indo para o Clutch. Quer que a gente te apanhe? O Adam acaba de tirar carteira de motorista.
Sou perfeitamente legal! - gritou o Adam no telefone.
Clutch?
É, o Café Clutch, no centro. Você não gosta de café? Você não é de Nova York?
Aquela eu tive que pensar.
Podes crer. O problema... é que eu já estou meio com¬prometida.
Ah, corta essa! Que compromisso você pode ter? Vai lavar o casaco? Sei que você é a maior heroína e coisa e tal, e talvez não tenha tempo para nós, simples mortais, mas...
Ainda não acabei minha redação sobre a batalha de Bladensburgo para o professor Walden - disse. - E ainda preciso estudar muita geometria se quiser chegar perto de vocês, gênios.
Ai meu Deus - retrucou Cee Cee. - Falou, então. Mas vai ter que prometer que senta do nosso lado no almoço amanhã. Queremos saber direitinho como você apertou o seu corpo contra o do Bryce e como se sentiu e tudo mais...
Não quero saber nada disso - cortou o Adam, fingindo-se de horrorizado.
- É isso aí - concluiu Cee Cee. - Eu quero saber tudinho. Eu prometi a ela que não omitiria nenhum detalhe e desliguei. Olhei para o telefone, e, para grande alívio meu, ele não estava tocando. Eu nem podia acreditar. Nunca na vida eu havia sido tão popular. Sinistro.
Claro que eu tinha pregado a maior mentira sobre o de¬ver de casa. Já tinha escrito a redação e estudara dois capí¬tulos de geometria - o máximo que eu conseguiria numa noite. Mas a verdade, claro, é que eu tinha uma missão a cumprir, e precisava me preparar.
Não é preciso muita coisa para fazer uma mediação. Cruzes e água benta são coisas que podem ser necessárias para matar um vampiro - e posso lhes garantir que nunca na vida encontrei um vampiro, e não foram poucas as ho¬ras que eu passei em cemitérios -, mas no caso de fantas¬mas, basta ter uma boa lábia.
Mas às vezes, para que o trabalho fique bem-feito, é ne¬cessário mesmo tomar certas providências. E para isso são necessárias algumas ferramentas. Recomendo sempre usar objetos encontrados no local, pois assim você não tem que carregar muita coisa. Mas não deixo de levar comigo um cinturão de ferramentas com lanterna, uma chave de fen¬da, alicates e coisas assim, que eu uso por cima de um par de leggings pretos. Eu estava apertando o cinturão por volta de meia-noite, feliz porque todo mundo na casa já es¬tava dormindo - inclusive o Soneca, que àquela altura já tinha voltado das entregas de pizzas -, e acabava de me me¬ter na minha jaqueta de moto quando recebi uma visita, adivinha de quem?...
- Minha nossa! - exclamei ao dar com o reflexo dele por trás do meu no espelho em que eu estava me olhando. Eu juro, há anos que vejo fantasmas, mas sempre me dá um calafrio quando algum deles se materializa na minha frente. Dei meia-volta, muito danada, não porque ele estivesse ali, mas por ter me apanhado de surpresa. - Por que ainda está por aqui? Achei que tinha dito para você se mandar.
Jesse estava recostado no maior relax numa das pilastras da minha cama. Com seus olhos negros, me examinava do alto do meu capuz à ponta dos meus tênis.
Não acha que já é um pouco tarde para sair, Suzannah? - perguntou ele, com a maior naturalidade, como se esti¬véssemos no meio de uma conversa sobre, sei lá, digamos, a segunda Lei dos Escravos Foragidos, que deve ter sido pro¬mulgada mais ou menos na época em que ele morreu.
Hmm - fiz eu, tirando o capuz. - Olha só, sem querer ofender, Jesse, mas isto aqui é o meu quarto. Que tal você tentar se mandar? E que tal deixar que eu cuide da minha vida?
Jesse nem se mexeu.
Sua mãe não vai gostar de saber que você está saindo tão tarde da noite.
Minha mãe? - E fiquei olhando para ele, lá em cima, pois era surpreendentemente alto para alguém que está mor¬to. - Que é que você sabe da minha mãe?
Gosto muito da sua mãe - disse Jesse calmamente. - É uma boa mulher. Você tem muita sorte de ter uma mãe que a ame tanto. Acho que ela ficaria muito preocupada em ver que você está se expondo ao perigo.
Me expondo ao perigo... É isso aí!
- Tudo bem. Segura esta agora, Jesse. Há muito tempo eu saio de noite e minha mãe nunca disse uma palavra so¬bre isto. Ela sabe perfeitamente que eu sei cuidar de mim.
OK, uma bela duma mentirinha, mas ele não tinha como saber mesmo...
- Sabe mesmo? - perguntou ele, erguendo dubitativamente uma das sobrancelhas negras. Não pude deixar de perceber que havia uma cicatriz cortando pelo meio essa sobrancelha, como se alguém tivesse zunido uma faca de raspão em seu rosto. Eu meio que senti a sensação que de¬via dar. Especialmente quando ele deu uma risadinha de satisfação e disse: - Acho que não sabe não, hermosa. Não neste caso.
Eu levantei as duas mãos.
- OK. Para começo de conversa: não fale comigo em es¬panhol. Número dois: você nem sabe aonde eu estou indo, de modo que sugiro que largue do meu pé.
- Mas eu sei perfeitamente aonde você está indo, Suzannah. Você está indo para o colégio para tentar falar com aquela garota que está tentando matar o rapaz, aque¬le de que você parece estar... gostando. Mas estou lhe avisando, hermosa, você não agüenta com ela sozinha. Se tiver mesmo de ir, devia levar o padre com você.
Fiquei olhando para ele. Tinha a sensação de que meus olhos estavam saltando para fora, mas não podia acreditar no que estava acontecendo.
- O quê? Como pode estar sabendo de tudo isso? Por acaso você está... me perseguindo?
Ele deve ter percebido pela minha reação que não devia ter dito aquilo, pois se endireitou e disse:
Não sei o que significa esta palavra, perseguindo. Só sei que você está se expondo ao perigo.
Você anda me seguindo - insisti, apontando para ele um dedo acusador. - Vai dizer que não anda? Tenha dó, Jesse, eu já tenho um irmão mais velho, não preciso de outro não. Não preciso que ande por aí me espionando...
Oh, claro - disse ele, com todo sarcasmo. - Esse irmão cuida muito bem de você. Quase tão bem quanto cuida do próprio sono.
Espera aí! - exclamei, saindo em defesa do Soneca, contra todas as probabilidades. - Ele trabalha de noite, está sabendo? Está economizando para comprar um Camaro!
Jesse fez um gesto que muito provavelmente era gros¬seiro, lá pelos idos de 1850.
Você não vai a lugar nenhum - disse então.
Ah, é mesmo? - desafiei, rodando no calcanhar e saindo porta afora. - Tente me segurar, bafo de cadáver.
Ele foi de uma precisão cirúrgica. Minha mão já estava na maçaneta quando a tranca da porta se fechou. Eu nem tinha notado ainda que havia uma tranca na minha porta - ela devia ser muito antiga. O controle manual estava ar¬rebentado e só Deus sabia onde é que podia estar a chave.
Fiquei parada ali bem meio minuto, olhando para mi¬nha mão sem acreditar muito enquanto ela girava em vão a maçaneta. Até que resolvi respirar bem fundo, como havia sugerido a terapeuta da minha mãe. Ela não estava querendo dizer que eu devia respirar fundo quando estivesse en¬frentando um fantasma perseguidor. Achava apenas que de¬via fazê-lo de maneira geral, sempre que estivesse me sentindo estressada.
Mas o fato é que ajudou. E ajudou muito.
- OK - disse afinal, voltando-me. - Jesse, isto não é nada legal.
Jesse ficou muito sem graça. Bastava olhar para ele para entender que não estava nada satisfeito com o que acabara de fazer. Não sei o que foi que causou a sua morte na vida anterior, mas certamente não foi por ele ser um sujeito cruel ou por gostar de machucar as pessoas. Ele era um bom su¬jeito. Ou pelo menos estava tentando ser.
- Eu não posso... - disse ele, já agora bem na minha frente. - Suzannah, não vá. Essa mulher... essa garota, a Heather, não é como os outros espíritos que você pode ter encontrado. Ela está cheia de ódio. Se puder, vai matá-la.
Eu dei um sorriso encorajador:
- Aí mesmo é que eu devo acabar com ela, não? Vamos lá, abra a porta.
Ele hesitou. Por um momento, achei que ele ia abri-la. Mas ele acabou não abrindo. Apenas ficou lá, meio sem graça, mas firme.
- Como quiser - disse eu, e o contornei, caminhando direto para a janela. Botei um pé no assento que o Andy havia feito e levantei a persiana da janela. Já estava com uma perna passando sobre o peitoril quando senti sua mão agarrando meu pulso.
Voltei-me para olhar para ele. Não consegui ver seu ros¬to, pois a luz da minha cabeceira estava por trás dele, mas ouvia perfeitamente sua voz e o tom suave em que pedia:
- Suzannah...
Só isso: apenas o meu nome.
Eu não disse nada. Nem podia. Quer dizer, claro que po¬dia, não era como se houvesse um caroço na minha gargan¬ta ou coisa assim. Simplesmente... sei lá.
Em vez disso, fiquei olhando para a mão dele, que era muito grande e meio escura, mesmo por cima do couro pre¬to da minha jaqueta. Ele tinha um bocado de força naque¬la mão, para um sujeito que estava morto. E até para um sujeito vivo. Viu que o meu olhar estava baixando, olhou na mesma direção e se deu conta de que sua mão estava agarrando o meu pulso,
E então me soltou de repente, como se minha pele tivesse começado a queimar ou coisa parecida. Eu continuei subindo na janela. Quando consegui atravessar o telhado da varanda e chegar ao chão lá embaixo, voltei-me em di¬reção à janela do meu quarto.
Mas é claro que ele já tinha ido embora.

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