quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 17

Meu despertador tocou à meia-noite. Eu o desliguei, bati palmas para acender a luz, rolei na cama e fiquei olhando para o dossel lá em cima.
Isso mesmo. Tinha chegado o dia D. Ou dia E, no caso.
Eu estava tão cansada depois do jantar que sabia que nunca conseguiria se não tirasse uma soneca. Disse à mi¬nha mãe que ia lá para cima fazer o dever de casa, e que depois ia me deitar para tirar uma soneca. Quando a gente morava no Brooklin, não teria o menor problema. Minha mãe me teria deixado sossegada, exatamente como eu pe¬dia. Mas na casa dos Ackerman a expressão "quero ficar sozi¬nha" aparentemente não significava absolutamente nada. E não porque a casa estivesse cheia de fantasmas por todo lado. Não, para variar, eram os vivos que ficavam me perturbando.
Primeiro foi o Dunga. Quando me sentei para desfrutar de mais um jantar gastronômico imaculadamente preparado por meu padrasto, pairava uma certa dúvida, pois no fim das contas eu só havia chegado em casa depois das seis. Como sempre, chegou a hora do "onde você estava?" da minha mãe (muito embora eu me tivesse dado ao trabalho de deixar aquele bilhete para ela). Depois o Andy veio com o seu "foi divertido?". E logo em seguida tive de ouvir um "com quem você estava?" logo de quem? Do Mestre. E quan¬do eu informei que estivera com Adam McTavish e Cee Cee Webb, Dunga fez uma careta de nojo e lançou, sem parar de mastigar sua almôndega:
- Caramba! Os esquisitos da turma. Andy interveio:
- Ei, veja como fala.
- Puxa, pai - insistiu Dunga. - Uma é uma albina superesquisita e o outro é boiola.
Isto lhe valeu um espetacular cascudo do pai, que tam¬bém o deixou de castigo por uma semana. Com isto, não pude deixar de lembrar ao Dunga mais tarde, quando está¬vamos tirando a mesa, que ele não poderia ir à festa na piscina de Kelly Prescott, para a qual, por sinal, tinha sido convidado graças a mim, a rainha dos esquisitos.
- Pena mesmo, meu chapa - disse eu, dando um tapi¬nha de solidariedade na bochecha do Dunga.
Ele empurrou a minha mão.
Ah, é? - foi dizendo. - Bom, pelo menos ninguém vai me chamar de bicha amanhã.
Ora, ora, meu benzinho - continuei, beliscando a mesma bochecha. - Você nunca vai precisar se preocupar de ser chamado disso. Só te xingam de coisas muito piores.
Ele voltou a agarrar minha mão, aparentemente tão fu¬rioso que ficou sem fala por algum tempo.
- Prometa que nunca vai mudar - pedi. - Você é mesmo um barato exatamente do seu jeito...
Dunga me chamou de um nome muito feio, no exato momento em que seu pai entrava na cozinha com o resto da salada.
Andy deu-lhe mais uma semana de castigo e depois man¬dou-o para o quarto. Para mostrar como tinha ficado abor¬recido, Dunga botou para tocar os Beastie Boys tão alto que eu não conseguia dormir, pelo menos até que o Andy voltou a interferir, tomando as caixas de som. De repente tudo fi¬cou um enorme sossego e eu já estava pegando no sono quando alguém bateu na minha porta. Era o Mestre.
Hmm - começou ele, olhando nervosamente para a escuridão do meu quarto, o quarto "mal-assombrado" da casa. - Será que a hora é apropriada para... falar das coisas que eu andei descobrindo? Quer dizer, sobre a casa... E as pessoas que morreram aqui...
Pessoas? No plural?
Com certeza - prosseguiu Mestre. - Consegui encontrar uma quantidade incrível de documentos sobre os crimes que foram cometidos nesta casa, em muitos casos crimes de ho¬micídio em todos os graus. Como era uma estalagem, havia sempre muitos moradores temporários, boa parte dos quais estava voltando para casa depois de fazer fortuna na corrida do ouro no norte do estado. Muitos foram assassinados en¬quanto dormiam e tiveram seu ouro roubado, possivelmente pelos próprios donos do estabelecimento, segundo certas ver¬sões, porém mais provavelmente por outros moradores...
Temendo que estivesse para ouvir que o Jesse tinha mor¬rido exatamente dessa maneira e nada interessada em ficar sabendo mais sobre as causas de sua morte, especialmente se ele estivesse ali por perto para ouvir também, eu o in¬terrompi:
- Escuta só, Mestre... quer dizer, Dave. Acho que até hoje ainda não consegui me recuperar da viagem, de modo que vou tentar tirar uma soneca das boas. Será que não podemos falar disso amanhã no colégio? Quem sabe almoçamos juntos...
Mestre arregalou os olhos,
- Está falando sério? Vai querer almoçar comigo? Fiquei olhando para ele.
Mas claro! Por quê? Existe alguma regra proibindo que o pessoal do segundo grau almoce com o pessoal do pri¬meiro?
Não - respondeu ele. - É só que... nunca acontece.
Bom, pois eu vou - insisti. - Tudo certo? Você compra as bebidas e eu pago a sobremesa.
Beleza! - exclamou Mestre, que voltou para seu quar¬to como se eu tivesse prometido que amanhã lhe daria de presente o trono da Inglaterra.
Eu já estava quase começando a dormir de novo, quan¬do ouvi baterem na porta novamente. Dessa vez, quando abri, lá estava o Soneca, parecendo mais desperto que eu, para variar.
- Olha só - começou ele. - Não quero saber se você vai usar o carro de noite, mas vai botando as chaves lá no gan¬cho, OK?
Eu fiquei olhando para ele.
Eu não tenho saído com o seu carro à noite, So... quer dizer, Jake.
Seja lá o que for - insistiu ele. - Apenas trate de deixar as chaves onde as encontrou. E não seria nada mau se você contribuísse de vez em quando com a gasolina...
Eu respondi bem devagar, para ele entender:
Eu não tenho saído com o seu carro à noite, Jake.
Ninguém tem nada a ver com o uso que você faz do seu tempo - insistiu Soneca. - Não acho um barato viver em gangues, mas cada um sabe da sua vida. Apenas trate de botar minhas chaves no lugar, onde eu possa encontrá-las.
Entendi que não tinha sentido ficar discutindo, concor¬dei e fechei a porta.
Depois do quê, finalmente consegui umas boas horas de sono. Não cheguei propriamente a acordar me sentindo nova (talvez eu pudesse dormir por mais um ano), mas de qualquer maneira estava me sentindo um pouco melhor.
Pelo menos, melhor o suficiente para ir acertar os fundilhos de algum fantasma.
Algumas horas antes eu havia juntado tudo de que ia precisar. Minha mochila estava cheia de velas, pincéis, um recipiente para sangue de galinha, que eu havia comprado no açougueiro aonde fizera o Adam me levar antes de me deixar em casa, e vários outros apetrechos indispensáveis para a realização de um bom exorcismo à brasileira. Estava completamente preparada para ir em frente. Só faltava calçar meus tênis, e lá ia eu.
Só que, naturalmente, o Jesse tinha de aparecer exata¬mente no momento em que eu estava pulando do telhado da varanda.
- Tudo bem - fui dizendo, enquanto me endireitava, com os pés doendo um pouco, apesar de ter aterrissado em ter¬ra fofa. - Vamos deixar uma coisa bem clara logo de saída. Você não vai dar as caras lá na Missão esta noite. Entendido? Se aparecer por lá, vai se arrepender, e não será pouco.
Jesse estava recostado num dos pinheiros gigantes do nosso jardim. Simplesmente recostado, os braços cruzados, me olhando como se eu fosse alguma atração especial ou coisa parecida.
- Estou falando sério - continuei. - Não vai ser uma noite nada boa para fantasmas. Nada boa mesmo. De modo que se eu fosse você não dava as caras por lá.
Deu para perceber que o Jesse estava sorrindo. A lua não era tão forte como na noite anterior, mas ainda assim havia luar e dava para eu ver que as curvas na ponta de seus lábios voltavam-se para cima, e não para baixo.
Suzannah - disse ele. - O que você está querendo?
Nada - respondi, caminhando em direção à garagem e apanhando a bicicleta de dez marchas. - Preciso apenas acertar uma coisas.
Jesse aproximou-se de mim enquanto eu botava o ca¬pacete.
Com a Heather? - perguntou, polidamente.
Isso aí. Com a Heather. Sei que as coisas saíram do controle da última vez, mas dessa vez vai ser diferente...
Como, exatamente?
Eu passei a perna por cima daquela barra cretina que eles põem nas bicicletas para garotos e me posicionei bem no alto da rua, com os dedos firmes no guidão.
- Tudo bem - disse então. - Vou te dar uma colher. Vou fazer um exorcismo.
Sua mão direita voou e agarrou firme a barra entre mi¬nhas mãos.
- Um o quê?! - fez ele, com uma voz completamente destituída do bom humor que a caracterizava até então.
Eu engoli em seco. Tudo bem, eu não estava assim tão confiante quanto queria parecer. Na realidade, estava prati¬camente tremendo em cima de meus All-Star. Mas que mais podia eu fazer? Eu tinha de deter a Heather antes que ela fizesse mal a alguém mais. E seria mesmo sensacional se todo mundo simplesmente me ajudasse nisso.
Você não pode me ajudar - fui dizendo, completamente fria. - Vê se fica afastado de lá esta noite, Jesse, caso contrário poderá ser exorcizado também.
Você perdeu o juízo - disse ele, com o mesmo tom in¬diferente que eu tinha passado a usar.
Provavelmente - reconheci, desanimada.
Ela vai matá-la - insistiu Jesse. - Não está entenden¬do? É isso que ela quer.
Não - respondi, sacudindo a cabeça. - Ela não quer me matar. Primeiro ela quer matar todo mundo que é importan¬te para mim. Só depois é que quer me matar.
Eu funguei. Não sei por quê, mas meu nariz estava escor¬rendo. Provavelmente porque estava muito frio. Eu não en¬tendia como aquelas palmeiras conseguiam ficar vivas. Estava fazendo uns cinco graus lá fora,
- Mas ela não vai conseguir, entendeu? - continuei. - Eu vou impedi-la. Agora solte a minha bicicleta.
Jesse sacudiu a cabeça.
Não, não. Nem mesmo você seria capaz de fazer uma coisa tão idiota.
Nem mesmo eu? - retruquei, meio chateada, mesmo sem querer. - Muito obrigada.
Ele me ignorou.
O padre está sabendo disso, Suzannah? Você contou ao padre?
Hmm, claro. Ele está sabendo. Ele, hmm... vai se en¬contrar comigo lá.
O padre vai se encontrar com você?
Sim, claro, claro - disse eu, rindo meio nervosa. - Você não está pensando que eu ia tentar uma coisa dessas sozi¬nha, não é mesmo? Puxa, eu não sou tão burra assim, por mais que você pense.
Ele já estava segurando a bicicleta com menos firmeza.
- Bem, se o padre vai estar lá...
- Claro, claro. Com toda certeza.
Ele voltou a segurar firme. A outra mão do Jesse veio vin¬do na minha direção, e um longo dedo ficou sacudindo bem no meu nariz enquanto ele dizia:
- Você está mentindo, não está? O padre não vai estar lá coisa nenhuma. Ela o machucou, não é mesmo, hoje de manhã? Foi o que eu pensei. Ela o matou?
Eu balancei a cabeça. De repente fiquei sem vontade de falar. Era como se tivesse alguma coisa na minha garganta, uma coisa me machucando.
Por isso é que você está com tanta raiva - disse Jesse, pensativo. - Eu devia ter imaginado. Você está indo lá para acertar contas com ela pelo que ela fez com o padre.
E se for isto? - explodi. - Ela bem que merece!
Ele abaixou o dedo, agarrando o guidão da minha bici¬cleta com as duas mãos. E posso dizer que ele era bem fortão para um cara que está morto. Eu não conseguia me mexer com ele agarrado daquele jeito.
Suzannah - disse ele. - Não é assim que se fazem as coisas. Não foi para isto que você recebeu este extraordinário dom, não para fazer coisas assim...
Dom?! - exclamei eu, apertando os dentes para não cair na gargalhada. - É isso aí, Jesse. Eu recebi mesmo um dom dos mais preciosos. E sabe o que mais? Estou de saco cheio. Mas estou mesmo. Eu achei que vindo para cá pode¬ria começar tudo de novo. Achei que as coisas poderiam ser diferentes. E sabe o que mais? São diferentes mesmo. São muito piores!
Suzannah...
O que você acha que eu devo fazer, Jesse? Amar a Heather pelo que ela fez? Abraçar seu espírito ferido? Sinto muito, mas é impossível. Talvez o padre Dom fosse capaz, mas eu não e ele está fora da jogada, de modo que vamos fazer as coisas do meu jeito. Vou me livrar dela, e se você quer o seu próprio bem, Jesse, fica fora dessa.
Dei um tranco bem forte no pedal e ao mesmo tempo agarrei o guidão com toda força. Foi tão inesperado para o Jesse, que ele largou a bicicleta involuntariamente. Um se¬gundo depois eu estava a caminho, projetando cascalho para trás com a roda traseira e cobrindo Jesse de poeira. Enquanto ia descendo pela rua, ainda pude ouvi-lo dizer um monte de coisas em espanhol. Provavelmente estava xingando. E com toda certeza a palavra hermosa não foi pro¬nunciada.
Grande parte da paisagem que ia percorrendo ao descer eu não consegui ver. O vento estava tão frio que ficavam saltando lágrimas pelas minhas bochechas e até o meu ca¬belo. Felizmente não havia muito trânsito, de modo que quando eu atravessei o cruzamento, não tinha importân¬cia que não estivesse vendo muita coisa. De qualquer maneira, os carros iam parando para eu passar.
Eu sabia que dessa vez seria mais difícil entrar no co¬légio. Eles deviam ter aumentado a segurança por causa do que acontecera na noite anterior. Mais segurança? A verdade é que bastava terem providenciado alguma segurança.
E foi o que fizeram. Havia um carro da polícia no esta¬cionamento, com as luzes apagadas. Simplesmente lá, para¬do, com o luar refletido nos vidros das janelas fechadas. O motorista - com certeza um novato, para ser encarregado de uma missão tão chata - provavelmente estava ouvindo música, embora de onde eu estava, junto ao portão do esta¬cionamento, não desse para ouvir nada.
De modo que eu ia precisar encontrar uma outra maneira de entrar. Sem problema. Escondi a bicicleta num arbusto e calmamente fui dar uma volta ao redor do colégio.
Não é muito fácil impedir que uma garota de 16 anos razoavelmente esbelta entre num prédio. Eu sou um boca¬do flexível. E também tenho juntas bem elásticas. Não vou contar aqui como é que acabei conseguindo entrar, pois não quero que as autoridades escolares descubram (nunca se sabe, pode ser que eu precise fazer tudo de novo algum dia), mas digamos que se alguém é encarregado de fazer um portão é melhor ter certeza de que ele chegou mesmo até o chão. Aquele vão entre o cimento e o ponto onde começa a base do portão é exatamente o espaço de que uma garo¬ta como eu precisa para se insinuar.
Lá dentro do estacionamento, as coisas pareciam bem diferentes da noite anterior - e muito mais aterrorizantes. Todos os holofotes estavam apagados (o que não me pare¬cia exatamente uma boa medida de segurança, mas é claro que a Heather podia perfeitamente ter arrebentado todas as lâmpadas), de modo que toda a área estava escura e cheia de sombras assustadoras. A fonte também estava desligada.
Dessa vez, só dava para ouvir os grilos. Só grilos cantando nos hibiscos. Nada de errado com os grilos. Os grilos são amigos.
Não havia o menor sinal da Heather. Não havia qual¬quer sinal de ninguém. O que era bom.
Fui caminhando com o máximo de cuidado (o que não era tão difícil com os meus tênis) até o armário que eu es¬tava... compartilhando com a Heather. Aí me ajoelhei e abri minha mochila.
Primeiro, acendi as velas. Precisava delas para enxergar ao redor. Segurando um acendedor de grelha de churrasco que havia trazido contra a base de uma das velas, derreti e pinguei um pouco de cera no piso e firmei a vela naquela goma. Repeti a operação com todas as outras velas até for¬mar um círculo luminoso à minha frente. Abri então a tam¬pa do recipiente com o sangue de galinha.
Não vou descrever aqui a forma que eu tinha de desenhar no centro do círculo de velas para que o exorcismo desse cer¬to. Exorcismo é o tipo da coisa que a gente não deve tentar fazer em casa, por pior que seja a assombração. E só deve ser confiado a uma profissional como eu. Afinal, ninguém ia querer machucar algum fantasma inocente que estivesse só passando por ali. Tipo exorcizar a vovó ou coisa do gênero...
E também não é recomendável que as pessoas comecem a mexer com macumba, e por isto não vou repetir aqui a invocação que tive de fazer em português mesmo. Digamos apenas que mergulhei meu pincel no sangue de galinha e fiz o desenho adequado, emitindo as palavras exigidas. Foi só quando retirei a fotografia da Heather da mochila que notei que os grilos haviam parado de cantar.
- Que diabos você acha que está fazendo? - disse ela, bem atrás do meu ombro.
Eu não respondi. Botei a foto no centro da forma que eu havia pintado. Ela ficou bem iluminada pelas velas. Heather aproximou-se mais.
- Onde foi que arranjou esta foto minha?
Eu me limitei a pronunciar as palavras que tinha de di¬zer em português. O que pareceu irritar ainda mais a Heather.
Bom, parece mesmo que temos de reconhecer que tudo irritava a Heather.
- O que você pensa que está fazendo? - perguntou ela de novo. - Que língua é essa que está falando? E para que esta pintura vermelha?
Como eu não respondesse, a Heather começou a ficar ainda mais abusada - o que parecia ser a sua especialidade.
- Olha aqui, sua vaca - foi dizendo, botando a mão no meu ombro e me puxando nada delicadamente. - Está me ouvindo?
Eu interrompi o ritual.
- Pode me fazer um favor, Heather? - perguntei. - Quer ficar bem ali perto do seu retrato?
Heather sacudiu a cabeça e seus longos cabelos loiros reluziram à luz das velas.
- O que está acontecendo com você? - perguntou ela com grosseria. - Está bêbada por acaso? Não vou ficar em lugar nenhum. Isso aí... isso é sangue?
Eu dei de ombros. Ela continuava com a mão no meu ombro.
Sim - respondi. - Mas não se preocupe. É só sangue de galinha.
Sangue de galinha? - repetiu Heather com uma care¬ta. - Chocante. Está brincando comigo? Para que isto?
Para te ajudar - respondi. - Para te ajudar a ir embora.
Heather apertou os dentes. As portas dos armários come¬çaram a sacudir. Mas não muito. Só o suficiente para que eu ficasse sabendo que a Heather não estava nada satisfeita.
Pensei que tinha deixado bem claro ontem à noite que eu não vou a lugar nenhum - disse ela.
Você disse que queria ir embora.
Exatamente - respondeu ela, enquanto os segredos das trancas dos armários começavam a girar ruidosamente. - Para minha antiga vida.
Pois eu descobri uma maneira...
As portas começaram a parecer tambores, de tanto que sacudiam.
Esquece - respondeu ela.
Esquece, não: lembra. Você só precisa ficar de pé aqui, no meio dessas velas, perto do seu retrato.
Nem precisei insistir. Num segundo, ela estava exatamen¬te onde eu queria que estivesse.
Tem certeza de que isto vai funcionar? - quis saber, toda excitada.
É melhor que funcione, caso contrário terei desperdi¬çado minha cota de velas e sangue de galinha - respondi.
E as coisas vão voltar a ser exatamente como eram? Quer dizer, como eram antes de eu morrer?
Claro - respondi. Fiquei me perguntando se era o caso de me sentir culpada por estar mentindo. Eu não me sen¬tia nem um pouco culpada. Só sentia um grande alívio. Tinha sido tudo tão fácil. - Agora fique calada um pouco para eu dizer as palavras.
Ela estava louca para colaborar. Então eu disse as palavras
E disse as palavras.
E disse as palavras de novo.
Eu já estava começando a me preocupar, achando que nada ia acontecer, quando a luz das velas começou a tremer. E não estava passando nenhum vento.
- Não está acontecendo nada - queixou-se a Heather, mas eu mandei que ela se calasse.
As chamas voltaram a tremer. De repente, acima da cabe¬ça da Heather, onde devia estar o telhado da galeria, apare¬ceu um buraco cheio de gases vermelhos dando voltas. Eu fiquei olhando para aquele buraco.
Heather, é melhor você fechar os olhos - disse então. Ela prontamente obedeceu.
Por quê? Está funcionando?
É - disse eu. - Está funcionando sim.
Heather disse alguma coisa do tipo "legal", mas não pude ouvir bem. Não dava para ouvir direito porque o gás ver¬melho que ficava girando no ar, e que parecia mesmo uma fumaça, estava começando a sair do buraco e fazia uma es¬pécie de ronco. Logo depois, longos anéis daquela coisa começaram a envolver a Heather, diáfanos como uma bru¬ma. Só que ela não sabia, pois estava de olhos fechados.
- Estou ouvindo alguma coisa - disse ela. - Está aconte¬cendo?
Acima de sua cabeça, o buraco havia aumentado muito. Dava para ver uns relâmpagos lá dentro. Não parecia o lu¬gar mais atraente do mundo. Não estou dizendo que eu ti¬nha aberto uma porta para o inferno ou coisa parecida (pelo menos era o que eu esperava), mas certamente se tratava de uma dimensão que não era a nossa, e com toda franque¬za não parecia um lugar muito agradável para visitar, muito menos para viver por toda a eternidade.
- Só mais um minutinho e você chega lá - disse eu, en¬quanto aumentava o número de anéis vermelhos de fuma¬ça ao redor daquele corpinho de animadora de torcida.
Heather ajeitou os cabelos longos.
- Oh meu Deus! - fez ela. - Mal posso esperar. A primeira coisa que vou fazer é ir ao hospital pedir desculpas ao Bryce. Você não acha uma boa idéia, Suzinha?
Eu respondi, enquanto o trovão aumentava e os relâm¬pagos ficavam mais freqüentes:
Claro, é uma grande idéia.
Tomara que a minha mãe não tenha jogado minhas roupas fora - prosseguiu a Heather. - Só porque eu estava morta. Você acha que a minha mãe pode ter jogado fora as minhas roupas, Suzinha? Acha mesmo? - insistiu ela, abrin¬ do os olhos.
Eu gritei:
- Fique de olhos fechados!
Mas já era tarde. Ela já tinha visto. Puxa vida, ela tinha visto. Ficou meio segundo olhando para aqueles anéis ao seu redor e começou a berrar.
E não estava berrando de medo, não senhor. A Heather não estava com medo. Estava furiosa. Para valer.
- Sua vaca! - gritou. - Você não está me mandando de volta! Não mesmo! Está me mandando embora!
E de repente, no momento em que o trovão começava a ficar ainda mais forte, a Heather saiu do círculo.
Assim mesmo. Ela simplesmente deu um passo para fora. Como se não tivesse a menor importância. Como no jogo da amarelinha. Aqueles anéis de fumaça que estavam ao re¬dor dela simplesmente desapareceram. Sumiram como fu¬maça. E o buraco acima da cabeça de Heather se fechou.
Bom, vou ter de confessar que fiquei muito danada. Eu tinha tido um trabalho enorme para conseguir aquilo.
- Ah, não - resmunguei, aproximando-me da Heather e agarrando-a, pelo pescoço mesmo. - Volte já para lá. Volte para lá imediatamente - disse, com os dentes trincados.
Heather limitou-se a rir. Estava presa numa gravata, e ainda ria.
Por trás dela, no entanto, as portas dos armários come¬çaram a se sacudir de novo. Mais alto que nunca.
- Você é uma mulher morta - disse ela. - Você já está morta, Simon. E sabe o que mais? Vou dar um jeito para que os outros também se juntem a você. Todos aqueles seus amigos esquisitos. E aquele seu meio-irmão também.
Eu apertei ainda mais o seu pescoço.
- Não creio. Acho mesmo é que você vai voltar para onde estava e desaparecer como um fantasma bem bonzinho.
Ela riu de novo.
- Vamos ver isto, então - desafiou, com os olhinhos azuis brilhando enlouquecidamente.
Bem, se era assim que ela queria...
Dei-lhe um murro daqueles com o punho direito. E antes que ela conseguisse se recuperar, acertei-lhe um outro com a esquerda. Se ela sentiu os golpes, não deixou transpare¬cer. Não, não é verdade. Eu sei que ela sentiu os golpes por¬que as portas dos armários de repente começaram a abrir e fechar. Fechar não é bem a palavra. Começaram a abrir e a bater, mas a bater com muita força mesmo, sacudindo toda a galeria.
Não estou brincando. A galeria toda estava indo e vindo, como se o piso fosse de ondas do mar. As grossas pilastras de madeira que sustentavam o telhado arqueado se sacu¬diam naquele chão que as mantivera firmes e fortes por quase trezentos anos. Trezentos anos de terremotos, incên¬dios e inundações, e bastava o fantasma de uma animadora de torcida para que elas tremessem nas bases.
Como vocês podem ver, essa história de mediação não tem nada de divertido.
E de repente eram os dedos dela que estavam ao redor da minha garganta. Não sei como foi possível. Acho que eu devo ter ficado perturbada com aquele tremor todo. A coisa esta¬va muito esquisita. Eu a agarrei pelos braços e comecei a tentar empurrá-la de volta para o círculo de velas. Ao mesmo tempo, murmurava a invocação em português sem tirar o olho dos caibros que ondulavam lá em cima, na esperança de que o buraco voltasse a se abrir para a terra das sombras.
- Cala a boca! - gritou a Heather quando ouviu o que eu estava dizendo. - Cala essa boca! Você não vai me mandar embora! Meu lugar é aqui! É muito mais o meu lugar do que o seu!
Eu ficava repetindo as palavras. E continuava a em¬purrá-la.
- Quem você pensa que é? - gritava Heather com o ros¬to vermelho de raiva. Com o canto dos olhos, eu vi um vaso de gerânios levitar alguns centímetros acima da balaustrada de pedra em que se encontrava. - Você não é ninguém! Você só está no colégio há dois dias. Dois dias! Está pen¬sando que pode ir chegando e mudar tudo? Acha que pode simplesmente ir tomando o meu lugar? Quem você pensa que é?
Eu chutei uma perna e, agarrando bem os braços dela, dei-lhe uma rasteira e ambas caímos no chão. O vaso de flores foi atrás, não porque tivéssemos esbarrado nele, mas porque a Heather o atirou contra mim. Eu me abaixei no último instante, e o pesado vaso de argila se espatifou con¬tra os armários, numa explosão de terra, gerânios e cacos de barro. Agarrei a Heather pelos longos e lindos cabelos louros. Não era um gesto dos mais elegantes, mas também não tinha sido muito elegante da parte dela atirar gerânios em mim.
Ela começou a berrar de novo, chutando e se retorcendo como uma enguia, enquanto eu a arrastava e ao mesmo tempo a empurrava em direção ao círculo de velas. Ela havia começado a fazer outros objetos levitarem. As trancas sal¬taram das portas dos armários e voaram em minha direção como pequenos discos voadores. Depois surgiu um torna¬do, sugando tudo que estava dentro dos armários para a alameda, de modo que apostilas e fichários voavam para cima de mim de todas as direções. Eu fiquei com a cabeça abaixada, mas não perdi o controle dela quando o livro de trigonometria de alguém me atingiu em cheio no ombro. E ficava repetindo as palavras que certamente haveriam de abrir de novo aquele buraco.
Por que você está fazendo isto? - berrou Heather. - Por que simplesmente não me deixa em paz?
Porque não.
Eu estava lanhada, sem fôlego, pingando de suor, só pensando em largar ela ali mesmo, dar meia-volta e ir para casa, jogar-me na cama e dormir por um milhão de anos.
Mas não podia.
Então o que fiz foi dar-lhe um murro bem no peito, mandando-a de volta para o meio do círculo de velas. E no exa¬to momento em que ela tropeçou na foto que havia dado ao Bryce, o buraco que aparecera acima de sua cabeça voltou a se abrir. Desta vez a fumaça vermelha fechou-se em torno dela como um sufocante e espesso cobertor de lã. Ela não ia se soltar de novo. Não com aquela facilidade.
A fumaça vermelha a seu redor era tão espessa que eu já não podia vê-la, mas certamente a ouvia. Seus gritos dariam para despertar os mortos - só que ela era a única morta ali, naturalmente. Trovões ribombavam acima de sua cabeça. Lá dentro do buraco que voltara a se abrir, eu julgava estar vendo estrelas brilharem.
Por quê? - berrava Heather. - Por que está fazendo isto comigo?
Porque eu sou a mediadora - respondi.
E de repente duas coisas aconteceram quase simulta¬neamente.
A fumaça vermelha que envolvia a Heather começou a ser sugada para o buraco que girava em espiral, levando-a consigo.
E os poderosos pilares que sustentavam a galeria parti¬ram-se em dois como se fossem de gesso.
E foi aí que a galeria desmoronou em cima de mim.

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