quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 14

Eu corri tão depressa que mais tarde a irmã Mary Claire, a treinadora de corrida, perguntou se eu queria entrar para a equipe.
Mas a Cee Cee estava completamente enganada. Padre Dominic não estava morto. Nem o Bryce.
E o que havia acontecido não tinha nada a ver com acidente.
Como podia imaginar praticamente qualquer um, acontecera o seguinte: o Bryce entrou no gabinete do diretor por algum motivo, ninguém sabe qual. Talvez um passe de atraso, já que ele tinha perdido a formatura - só que não, como eu esperava, porque o padre Dom o tivesse encontrado. O Bryce estava de pé em frente à escrivaninha da secretária, embaixo do crucifixo gigante que, segundo o Adam, derramaria lágrimas de sangue se alguma vez houvesse uma formanda virgem na Academia da Missão (a secretária não estava lá porque estava servindo café aos guardas que continua¬vam lá pelo pátio) quando aquela enorme cruz de quase dois metros de altura de repente se desgarrou da parede. Padre Dominic abriu a porta do seu gabinete exatamente na hora em que ela estava caindo para a frente, a ponto de esmagar o crânio do Bryce. Mas, como o padre Dominic deu um empurrão nele, só a sua clavícula foi atingida.
Infelizmente, o padre Dominic acabou recebendo todo o peso da cruz, que o projetou no chão, esmagou suas costelas e quebrou uma de suas pernas.
O professor Walden e um grupo de irmãs ficou tentan¬do fazer com que voltássemos para a sala de aula em vez de ficar atravancando a galeria, à espera de que o padre Dom e o Bryce saíssem do gabinete. Uma parte do pessoal se afastou quando a irmã Ernestine ameaçou todo mundo de castigo, mas não eu. Eu não dava a menor bola se ficas¬se de castigo. Eu precisava saber se eles estavam bem. Irmã Ernestine disse alguma coisa desagradável, dando a enten¬der que talvez a srta. Simon não se desse conta de como era ruim ficar de castigo na Academia da Missão. Eu respondi que, se ela estivesse me ameaçando com castigos corporais, eu diria à minha mãe, que era apresentadora de um jornal local e chegaria lá com um câmera tão depressa que não daria nem tempo para alguém dizer uma Ave Maria.
Irmã Ernestine ficou bem calada depois disso.
Foi pouco depois que eu vi que o Mestre estava pertinho de mim. Como as crianças menores têm de ficar bem longe, do outro lado do colégio, eu olhei para ele e disse:
E o que você está fazendo aqui?
Quero ver se ele está bem - respondeu, com as sardas se destacando mais que nunca, tão pálido ele estava.
Você vai arranjar problema - adverti. Irmã Ernestine estava ocupadíssima anotando os nomes das pessoas.
Não dou a mínima - fez o Mestre. - Eu quero ver.
Eu dei de ombros. Aquele Mestre era mesmo um cara en¬graçado. Não tinha nada a ver com seus irmãos e não era só por causa do cabelo ruivo. Lembrei-me do comentário maldoso do Dunga sobre as chaves do carro e o "fantasma do Dave", e fiquei me perguntando até que ponto Mestre sabia alguma coisa, se é que sabia, sobre o que estava acontecendo ultimamente em seu colégio.
Finalmente, quando parecia que já tinham passado várias horas, eles saíram lá de dentro. Bryce foi o primeiro a aparecer, amarrado a uma maca e gemendo, lamento dizer, como um bebezinho. Eu já quebrei e desloquei um bocado de ossos, e podem ficar sabendo que dói, mas não a ponto de ficar lá deitada gemendo. Geralmente, quando me machuco eu nem me dou conta. Como ontem à noite, por exemplo. Quando realmente me machuco eu só consigo ficar rindo, pois dói tanto que chega a ser engraçado.
E vou ter de reconhecer que eu meio que parei de gostar tanto do Bryce depois de vê-lo agir daquela maneira como um bebê...
Especialmente quando vi o padre Dom, que foi trazido em seguida pelos paramédicos numa cadeira de rodas. Ele estava inconsciente, com os cabelos brancos caindo para o lado de um jeito tão triste e um corte parcialmente coberto por gaze acima do olho direito. Em minha pressa de che¬gar ao colégio, eu não tinha comido nada de manhã, e tenho de reconhecer que a visão do pobre padre Dominic com os olhos fechados e sem os óculos me fez sentir meio tonta. Na realidade, pode ser que eu tenha vacilado um pouco, e provavelmente teria caído se o Mestre não tivesse apanhado a minha mão e dito, confiante:
- Fique tranqüila. Eu também fico enjoado quando vejo sangue.
Mas não foi a visão do sangue do padre Dom vazando pelo curativo em sua cabeça que me deixou enjoada. Foi a constatação de que eu havia fracassado. Eu tinha fracassado terrivelmente. Foi por pura sorte que a Heather não tinha conseguido matar os dois. Era exclusivamente por causa da rápida reação mental do padre Dom que ele e Bryce ainda es¬tavam vivos. E não havia sido por minha causa. Não mesmo.
Pois se na noite anterior eu tivesse agido melhor aquilo não teria acontecido. Não teria acontecido mesmo.
Foi aí que eu fiquei danada. Danada para valer.
De repente, entendi o que eu tinha de fazer. Olhei para o Mestre e perguntei:
Há algum computador aqui no colégio? Um compu¬tador com acesso à Internet?
Claro - respondeu Mestre, parecendo surpreso. - Na biblioteca. Por quê?
Eu larguei sua mão.
- Esquece. Volte para sua sala. 
Suze...
Quem não estiver na sala de aula dentro de um minuto será suspenso por tempo indeterminado - anunciou irmã Ernestine imperiosamente.
Mestre puxou a minha manga.
O que está acontecendo? - quis saber. - Para que você quer um computador?
Para nada - respondi. Por trás do portão de ferro batido que dava para o estacionamento, os para-médicos estavam fechando as portas das ambulâncias que levariam padre Dom e o Bryce. Um segundo depois, estavam se afastando em meio a sirenes e luzes piscando.
É que... São coisas que você não entenderia, David. Não são coisas científicas.
Mestre respondeu, muito indignado:
- Sou capaz de entender muita coisa que não é científica. Música, por exemplo. Aprendi sozinho a tocar Chopin em meu teclado eletrônico. Isto não tem nada de científi¬co. O gosto pela música é puramente emocional, assim como o gosto pela arte. Sou capaz de entender arte e música. Portanto, corta essa, Suze. Pode me contar. Tem alguma coisa a ver com... aquilo que a gente estava comentando na outra noite?
Eu baixei o rosto e olhei para ele surpresa. Ele deu de ombros.
- Era a conclusão lógica. Fiz um rápido exame da estátua (rápido porque não consegui me aproximar como gostaria, por causa das fitas isolantes e da equipe que recolhia provas) e não encontrei marcas de serra ou qualquer outro sinal da maneira como a cabeça foi cortada. Não existe a menor possibilidade de cortar bronze tão certinho sem usar instrumentos pesados, que nunca poderiam ter sido leva¬dos até ali...
- Sr. Ackerman! Está querendo ser anotado! - ameaçou irmã Ernestine, que não parecia estar brincando.
David fez um ar de irritação.
Não - respondeu.
Não o quê?
Não, irmã. - Ele olhou em minha direção, como se pedisse desculpas. - Acho melhor ir andando. Mas será que podemos voltar a falar deste assunto à noite em casa? Eu descobri umas coisas sobre... bem, sobre aquilo que você me pediu. Você sabe. - E arregalou os olhos, cúmplice. - Sobre a casa.
Ah, sim - respondi. - Genial. OK.
Sr. Ackerman!
David voltou-se para ver a freira.
- Espere só um minuto, OK, irmã? Estou tentando conversar aqui com ela.
O rosto dela, uma mulher de meia-idade, ficou completamente lívido. Parecia incrível. Ela reagiu da maneira mais infantil, como se fosse ela que tivesse doze anos, e não o David.
- Faça o favor de me acompanhar, rapazinho! - disse, puxando-o pela orelha.
- Estou vendo que sua meia irmã pôs na sua cabeça algumas idéias muito interessantes da cidade grande sobre como os meninos devem falar com os mais velhos...
David emitiu um ruído como se fosse um animal ferido, mas a acompanhou, recurvado como um camarão de tan¬ta angústia que estava sentindo. Eu juro que não teria feito nada, nada mesmo, se de repente não tivesse visto a Heather de pé por trás do portão, rindo às gargalhadas.
- Minha nossa! - exclamou ela, meio engasgada, de tan¬to que estava rindo. - Se você tivesse visto a sua cara quando disseram que o Bryce estava morto! Juro! Foi a coisa mais engraçada que eu já vi! - Ela parou de rir para ajeitar seus longos cabelos e prosseguiu: - Sabe o que mais? Acho que vou esmagar mais algumas pessoas hoje. Talvez comece com aquele carinha ali...
Eu avancei em direção a ela.
- Se encostar a mão no meu irmão eu enfio a sua cara de volta naquele túmulo de onde saiu rastejando.
Heather limitou-se a rir, mas a irmã Ernestine, que, só então me dei conta, pensou que eu me dirigia a ela, soltou o David tão depressa que parecia que o garoto de repente tinha pegado fogo.
- O que foi que disse?
Irmã Ernestine estava ficando meio roxa. Atrás dela, Heather se escangalhava de rir,
- Agora você conseguiu mesmo. Detenção por uma semana!
E sem mais nem menos desapareceu, deixando mais uma barafunda dos diabos para eu resolver. 
Para surpresa tanto minha quanto, suponho, dela pró¬pria, irmã Ernestine só conseguia ficar olhando para mim. David estava ali esfregando a orelha com ar de espanto. Então eu disse o mais depressa que pude:
- Agora vamos voltar para a sala. Só estávamos preocu¬pados com o padre Dominic e queríamos acompanhá-lo até a saída. Obrigada, irmã.
Irmã Ernestine continuou olhando fixo para mim sem dizer nada. Era uma mulher grande, não tão alta quanto eu em minhas botas negras de salto alto, mas muito mais corpulenta, com aqueles seios enormes. Entre os dois pendia uma cruz de prata. Inconscientemente, irmã Ernestine to¬cava a cruz com os dedos enquanto me olhava. Mais tarde, Adam, que tinha visto a cena toda, diria que irmã Ernestine segurava com força a cruz, como se quisesse proteger-se de mim. O que não é verdade. Ela limitou-se a tocar a cruz, como se quisesse ter certeza de que continuava lá. E esta¬va. Com toda certeza.
Acho que foi naquele momento que o David deixou de ser Mestre para mim, e passou a ser mesmo David.
- Não se preocupe - disse-lhe pouco antes de nos separar¬mos, pois ele parecia tão preocupado e tão engraçadinho com seu cabelo ruivo, suas sardas e suas orelhas pontudas. Estiquei a mão e desarrumei aquela cabeleira vermelha: -Vai dar tudo certo.
David olhou para mim.
- Como você sabe? - perguntou. 
Eu recolhi minha mão.
Pois é claro que a verdade é que eu não sabia. Quer di¬zer, que tudo ia dar certo. Muito pelo contrário, na realidade.

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