quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 12

Vamos para casa. Aquele "Vamos para casa" tinha um ar tão acon­chegante...
Só que a casa na qual ambos estávamos vivendo ainda não me parecia exatamente como se fosse um lar. E como poderia? Eu só estava vivendo lá há uns poucos dias...
E por outro lado, claro, ele não tinha nada de estar viven­do lá...
De qualquer maneira, fantasma ou não fantasma, ele sal­vara a minha vida. Isto não se podia negar. E talvez só o tivesse feito para cortejar o meu lado bom, para que eu não acabasse por expulsá-lo completamente da casa.
Independentemente do motivo, o fato é que tinha sido muito legal da parte dele. Até então ninguém nunca tomara a iniciativa de me ajudar - principalmente, é claro, porque ninguém sabia que eu precisava de ajuda. Nem a Gina, que estava presente quando madame Zara declarou que eu era uma mediadora, sabia por que eu aparecia às vezes na es­cola com os olhos muito fundos, ou onde é que eu me metia quando faltava às aulas - coisa que eu fazia com bastante freqüência. E eu não podia explicar o que estava aconte­cendo. Não que a Gina fosse pensar que eu estava maluca ou alguma coisa assim, mas ela acabaria dizendo a alguém mais (a gente só consegue manter segredo sobre essas coisas quando estão acontecendo conosco), que por sua vez diria a mais alguém e eu sabia que em algum momento alguém acabaria dizendo a minha mãe.
E minha mãe entraria em surto. Claro que é isto que as mães costumam fazer, e a minha não é diferente das ou­tras. Ela já tinha me obrigado a fazer terapia e eu tinha de me sentar lá e ficar inventando mentiras complicadas na esperança de explicar meu comportamento anti-social. Eu não tinha a menor intenção de ir parar num asilo de loucos, que certamente era onde eu iria acabar se minha mãe algu­ma vez tivesse descoberto a verdade.
De modo que só podia me sentir agradecida por ter Jesse ao meu lado, embora ele me deixasse meio nervosa. Depois de toda aquela catástrofe lá na Missão, ele me acompanhou até em casa, um perfeito cavalheiro. E até insistiu em em­purrar ele mesmo a bicicleta, por causa da minha ferida. Se alguém tivesse olhado pelas janelas das casas por onde íamos passando, teria pensado que estava vendo coisas: eu me arrastando com dificuldade e aquela bicicleta deslizando ao meu lado sem o menor problema - com o detalhe de que mi­nhas mãos nem tocavam nela.
Ainda bem que na Costa Oeste as pessoas vão dormir cedo.
O tempo todo, enquanto voltávamos para casa, a única coisa em que eu conseguia pensar era o que havia saído errado no confronto com a Heather. Não voltei a falar do assunto - já o havia feito bastante; não queria ficar pare­cendo um disco quebrado, ou uma pianola quebrada ou o que quer que se usasse na época do Jesse. Mas era o único assunto em que eu conseguia pensar. Nunca, mas nunca mesmo, em todos aqueles meus anos como mediadora, eu havia encontrado um espírito tão violento e irracional. Eu simplesmente não sabia o que fazer. E eu sabia que preci­sava encontrar uma saída, e bem depressa; faltavam só umas poucas horas para começarem as aulas e o Bryce cair di­reitinho na armadilha mortal que estava sendo preparada para ele.
Não sei se o Jesse percebeu por que eu estava tão cala­da, ou se ele estava pensando na Heather também... Só sei que de repente ele quebrou o silêncio e disse:
- Não há no céu fúria comparável ao amor transforma­do em ódio nem há no inferno ferocidade como a de uma mulher desprezada.
Eu olhei para ele.
Está falando por experiência própria? Ele deu um pequeno sorriso à luz da lua.
É uma citação de William Congreve.
- Ah... Mas, como você sabe, às vezes a mulher desprezada está cheia de razões de ficar furiosa.
- E você, está falando por experiência própria? - quis saber ele.
Eu dei uma risada.
- Nem de longe.
Para te desprezar, é porque antes o cara gostou de você. Mas isto eu não disse em voz alta. Não há a menor hipótese de que eu pudesse alguma vez dizer uma coisa dessas em voz alta. Não que eu estivesse preocupada com o que o Jesse podia pensar de mim. Por que haveria de me preocupar com o que um caubói morto podia pensar de mim?
Mas eu não ia reconhecer diante dele que nunca havia tido um namorado. A gente não sai por aí dizendo coisas as­sim a caras gostosões como ele, mesmo que estejam mortos.
Mas a gente não sabe o que aconteceu entre a Heather e o Bryce. No fundo, não sabemos. Ela podia ter muitas razões para estar ressentida.
Ressentida com ele, acho que sim - disse Jesse, embo­ra parecesse relutante em admiti-lo. - Mas não com você. Ela não tinha direito de tentar machucá-la.
Ele parecia tão furioso com aquilo que achei melhor mu­dar de assunto. No fundo, eu é que devia ter ficado dana­da com o fato de a Heather ter tentado me matar, mas sabe como é, já estou meio acostumada a lidar com gente irra­cional. Tudo bem, não tão irracional como a Heather, mas vocês sabem o que estou querendo dizer. E se há uma coisa que eu já aprendi, é que não se pode tomar as coisas pelo lado pessoal. Certo, ela tinha tentado me matar, mas como é que eu vou saber se ela tinha algum discernimento? Quem pode garantir como eram os pais dela, afinal de contas? E se eles eram do tipo que saía por aí matando o primeiro ca­paz de contrariá-los?...
Mas depois de ver aquele colar de pérolas eu fiquei du­vidando que eles fossem desse tipo.
Enquanto estava pensando nessas matanças, acabei me perguntando por que o Jesse acabara ficando tão indigna­do. Foi aí que me dei conta de que provavelmente ele ti­nha sido assassinado. Ou então tinha se matado. Mas não achava que ele fosse capaz de se matar. Achava que ele pode­ria ter morrido de alguma doença arrasadora...
Talvez não tenha sido muito delicado da minha parte (mas de qualquer forma eu nunca fui propriamente famosa pela delicadeza), mas acabei indo em frente e perguntei, quando estávamos subindo a longa ladeira coberta de cas­calho até em casa:
- Mas e você? Como foi mesmo que morreu?
Jesse não disse nada logo em seguida. Provavelmente eu o tinha ofendido. Já pude notar que os fantasmas não gostam muito de falar sobre como morreram. Às vezes nem se lem­bram. Vítimas de acidentes de carro geralmente não têm a menor idéia do que lhes aconteceu. Por isto é que eu sem­pre as vejo vagando em busca das outras pessoas que es­tavam no carro com elas. Tenho então de explicar o que aconteceu e tentar de alguma maneira imaginar onde po­dem estar as pessoas que elas estão procurando. E isto é também um bocado doloroso, podes crer. Eu tenho de me abalar até a delegacia onde foi registrado o acidente, fingir que estou fazendo um trabalho para o colégio ou algo as­sim, copiar os nomes das vítimas e tentar descobrir o que aconteceu com elas.
Posso garantir que às vezes parece que meu trabalho nun­ca chega ao fim.
Seja como for, Jesse ficou calado por um momento e eu achei que ele não ia me contar. Ele estava olhando bem para a frente, na direção da casa - a casa onde tinha morrido, a casa onde haveria de ficar rondando até que... bem, até que pudesse resolver o problema que o estava retendo neste mundo.
A lua ainda estava à vista, bem alto lá no céu, e eu po­dia ver o rosto do Jesse como se fosse dia. Ele não estava parecendo muito diferente do habitual. Sua boca, que era mais para larga, de lábios finos, parecia estar meio carrancuda, o que, até onde eu sabia, era o que costumava fazer. E por baixo daquelas espessas sobrancelhas negras, seus olhos, de cílios tão densos, eram tão reveladores quanto um espelho - quer dizer, eu provavelmente seria capaz de ver meu reflexo neles, mas não adivinharia nada sobre o que ele estava pensando.
Hmm... - disse eu. - Sabe o que mais? Esquece. Se não quiser, não precisa me dizer...
Não - ele respondeu. - Tudo bem.
É só que eu estava meio curiosa, só isso. Mas se você achar que é uma coisa muito pessoal...
Não, não é. - Nós já havíamos chegado à casa. Ele em­purrou a bicicleta até o ponto onde ela devia ficar e a recostou no muro da garagem. Estava mergulhado na som­bra quando afinal disse: - Como você sabe, nem sempre esta casa foi uma casa de família.
Como se fosse a primeira vez que o ouvia falar daquilo, exclamei:
É mesmo?!
Sim. Houve uma época em que era um hotel. Quer di­zer, mais uma estalagem propriamente do que um hotel.
Perguntei então, toda animada:
E você estava hospedado aqui?
Sim. - Ele saiu da sombra da garagem, mas em vez de olhar para mim quando voltou a falar, estava com o olhar apertado voltado para o mar. Eu tentei animá-lo:
E... Aconteceu alguma coisa quando você estava aqui?
Sim. - E ele olhou para mim. Ficou me olhando por um longo momento. Depois, disse: - Mas esta é uma longa história, e você deve estar muito cansada. Vá se deitar. Amanhã de manhã decidiremos o que fazer sobre a Heather.
Pode ser mais injusto?
- Espera um pouco - interrompi. - Não vou a lugar nenhum enquanto você não acabar de contar essa história.
Ele balançou a cabeça:
Não, já é muito tarde. Eu conto uma outra vez.
Puxa vida! - Eu devia estar parecendo uma garotinha recebendo ordens da mãe para ir-se deitar cedo, mas estava pouco ligando. Estava danada da vida. - Você não pode começar uma história assim e não acabar de contá-la. Você tem de...
Agora o Jesse estava rindo de mim.
Vá se deitar, Suzannah - disse ele, empurrando-me suavemente para a escada. - Você já foi suficientemente assustada esta noite.
Mas você...
Quem sabe outra vez... - insistiu ele. Já me havia condu­zido na direção da varanda e agora eu estava no primeiro degrau, voltando-me para vê-lo rindo de mim.
Você promete?
Seus dentes brilharam no luar.
Prometo. Boa noite, hermosa.
Já disse para não me chamar disso - resmunguei, subindo os degraus com toda força.
Mas já eram quase três horas da manhã e o máximo que eu conseguia era fingir indignação. É bom lembrar que eu ainda estava no horário de Nova York, três horas na frente. Já era difícil levantar na hora para ir para a escola quando eu conseguia dormir oito horas inteirinhas. Como é que haveria de ser com apenas quatro horas de sono?
Entrei na casa o mais discretamente possível. Felizmente, todo mundo, menos o cachorro, dormia profundamente. Ao me ver, ele levantou a cabeça no sofá onde se havia espi­chado e começou a sacudir o rabo. Grande cão de guarda. E minha mãe, que não queria saber de vê-lo dormindo no sofá branquinho... Mas eu é que não ia transformar o Max em inimigo, enxotando-o dali. Se bastava deixar que ele continuasse dormindo no sofá para impedir que avisasse à casa inteira que eu tinha saído, valia a pena.
Fui me arrastando como podia escada acima, pensando o tempo todo no que haveria de fazer com a Heather. Prova­velmente teria de me levantar cedo e telefonar para o colé­gio, avisando ao padre Dom que fosse ao encontro do Bryce assim que ele pusesse os pés no campus e o mandasse de volta para casa. E decidi que nem mesmo me haveria de opor se fosse necessário recorrer aos piolhos. No fim das contas, a única coisa que interessava era impedir que a Heather conseguisse o que queria.
Ainda assim, a simples idéia de ter de levantar cedo para fazer alguma coisa - mesmo que fosse salvar a vida do cara com quem eu tinha um encontro no sábado à noite - não parecia das mais atraentes. Agora que a adrena­lina toda já havia passado, eu me dava conta de que esta­va morta de cansaço. Fiz mais um esforcinho e consegui chegar até o banheiro para vestir o pijama - claro, pois embora tivesse certeza de que o Jesse não estava me espio­nando, ele ainda não havia dito como tinha morrido, e portanto eu não ia arriscar nada. Ele bem que podia ter sido enforcado por voyeurismo, uma pena que eu acredi­tava ter sido aplicada algumas vezes uns cento e cinqüen­ta anos antes.
Foi só no momento em que decidi mudar a atadura no meu pulso que prestei atenção no que ele havia usado.
Era um lenço. Antigamente todo mundo usava lenço de pano, pois não havia lenços de papel. E as pessoas pare­ciam dar a maior importância, costurando neles as suas ini­ciais, para que não se perdessem ao serem lavados.
Só que o lenço do Jesse não tinha suas iniciais, conforme pude notar ao lavá-lo e tentar tirar o meu sangue o melhor que pude. Era um grande quadrado de linho, branco (bom, já então meio cor-de-rosa) com um debrum de delicada ren­da branca. Meio delicadinho para um cara como ele. Eu teria ficado meio cismada com a orientação sexual do Jesse se não tivesse visto as iniciais que estavam bordadas num dos can­tos. Os pontos eram minúsculos, linha branca sobre tecido branco, mas as letras propriamente eram enormes, numa caligrafia floreada: MDS. Isso mesmo. MDS. Nada de J.
Estranho. Muito estranho.
Pendurei o lenço para secar. Não precisava me preocu­par com a possibilidade de alguém vê-lo. Para começo de conversa, só eu usava o meu banheiro, e além disso ninguém era mesmo capaz de ver o Jesse, portanto ninguém pode­ria ver o seu lenço. Amanhã de manhã ele estaria lá exata­mente como agora. E talvez eu decidisse exigir explicações sobre aquelas letras antes de devolvê-lo. MDS.
Só quando estava começando a adormecer é que me dei conta de que MD devia ser uma garota. Caso contrário, por que tanta rendinha? E aquelas letras todas caprichadas? Será então que o Jesse não tinha morrido num tiroteio, como eu acreditava inicialmente, e sim em alguma briga de amantes?
Não sei por que, mas o fato é que esta idéia me deixou bem perturbada. Por causa dela fiquei acordada bem uns três minutos. Até que virei para o outro lado, senti falta da minha antiga cama por um instantinho só e caí no sono.

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