quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 3

Se eu dissesse que o cara ficou surpreso de ser interpe­lado daquela maneira, estaria muito longe de dar idéia da reação dele. Ele não ficou apenas surpreso. Chegou até a olhar ao redor para ver se era com ele mes­mo que eu estava falando.
Mas é claro que a única coisa que havia atrás dele era a janela e, além dela, aquela vista inacreditável da Baía de Carmel. De modo que acabou se voltando novamente para mim e deve ter visto que meu olhar estava grudado no seu rosto, pois suspirou "Nombre de Dios" de um jeito que pro­vavelmente faria desmaiar a Gina, que tem um fraco por latinos.
- Não adianta invocar seus espíritos superiores - comu­niquei-lhe, arrastando a cadeira com bordados cor-de-rosa para minha nova penteadeira e sentando-me nela, de frente para o encosto. - Se ainda não notou, Ele não está prestando muita atenção em você. Caso contrário, não o teria deixa­do por aqui apodrecendo todos estes anos... - e então dei uma olhada mais firme nas suas roupas, que pareciam muito com algo saído do velho oeste. - Quantos anos mesmo?... Uns cento e cinqüenta anos? Já passou mesmo este tempo todo desde que você bateu as botas?
Ele me olhou fixamente com seus olhos negros e úmi­dos. E perguntou, com uma voz rouca por falta de uso:
- Que quer dizer... bateu as botas?
Eu não pude deixar de revirar os olhos de impaciência. E traduzi:
- Esticou as canelas. Dobrou o Cabo da Boa Esperança. Foi desta para melhor.
Quando vi por sua expressão de perplexidade que ele continuava sem entender, finalmente eu disse, algo exas­perada:
Morreu.
Ah - fez ele. - Morri.
Mas em vez de responder a minha pergunta, ele balançou a cabeça.
Não estou entendendo - disse, com ar de espanto. - Não entendo como você consegue me ver. Durante todos esses anos, ninguém nunca...
Claro - fui cortando, pois como você já deve estar saben­do estou cansada de ouvir esse tipo de coisa. - Olha só, os tempos mudaram um bocado, sabia? Então, qual é a sua?
Ele piscou com aqueles enormes olhos negros. Suas pes­tanas eram mais longas que as minhas. Não é sempre que eu dou de cara com um fantasma que também é uma graça, mas aquele cara... caramba, ele devia ter sido alguma coisa quando vivo, pois ali estava ele morto e eu já estava queren­do adivinhar como eram as coisas por baixo da camisa bran­ca que usava, bem aberta, mostrando um bocado o peito, e até um pouco do abdômen. Será que fantasma também faz abdominal? Era o tipo da coisa que eu nunca tivera opor­tunidade - ou vontade - de explorar até então.
Não que eu fosse me deixar perturbar por esse tipo de coisa àquela altura dos acontecimentos. Afinal de contas, sou uma profissional.
- A minha? - repetiu ele.
Até sua voz parecia liqüefeita, com um inglês monóto­no e sem acentuação como eu achava que era o meu, com aquele jeito de amortecer os "t" que a gente tem no Brooklyn. Era evidente que ele tinha alguma coisa de hispânico, como deixavam claro aquele "Nombre de Dios" que havia soltado e a cor da sua pele, mas com certeza era tão americano quan­to eu - ou pelo menos tão americano quanto podia ser al­guém que tivesse nascido antes de a Califórnia tornar-se um estado.
- É - disse eu para limpar a garganta. Ele se voltara um pouco e apoiara uma botina na almofada azul claro do assento da janela, e então eu pude ter certeza de que os fantasmas realmente podem fazer abdominais. Seus músculos abdominais eram muito definidos, e cobertos com uma leve penugem de sedosos pêlos negros.
Eu engoli em seco. Bota seco nisso.
- Sim, a sua - disse então. - Qual o seu problema? Por que ainda está aqui?
Ele olhou para mim, sem expressão no olhar, mas inte­ressado. Eu fui mais clara:
- Por que você ainda não foi para o outro lado?
Ele balançou a cabeça. Não sei se já disse que seu cabe­lo era curto e escuro e parecia bem crespo, dando a impres­são de que se você tocasse nele seria muito áspero mesmo.
- Não sei o que você está querendo dizer.
Eu estava ficando com calor, mas já tinha tirado a ja­queta de couro, de modo que não sabia mais o que fazer. Não podia tirar mais nada com ele ali me olhando. O fato de eu ter percebido isto é que deve ter contribuído para que de repente eu não me sentisse nada boazinha.
- Como assim não sabe o que eu estou querendo dizer? - rebati, afastando uma mecha de cabelos dos olhos. - Você está morto. Não tem mais que ficar aqui. Deveria estar em algum outro lugar fazendo alguma coisa que as pessoas devem fazer depois que morrem. Cantando entre os anjinhos, ardendo no inferno, reencarnando, subindo para algum outro plano da consciência, ou o que seja. Você não devia... estar simplesmente andando por aí.
Ele ficou olhando para mim pensativo, equilibrando o cotovelo no joelho levantado, com o braço meio vacilante.
- E se por acaso eu gostar exatamente de andar por aí? - quis saber.
Eu não tinha muita certeza, mas estava com a impressão de que ele estava zombando de mim. E eu não gosto nada que zombem de mim. Não gosto mesmo. No Brooklyn, o pessoal costumava fazer isso toda hora - pelo menos até eu descobrir que um punho bem fechado no nariz é capaz de calar uma boca.
Eu ainda não estava em condições de dar um murro na­quele cara - ainda não. Mas faltava pouco. Simplesmente, eu tinha viajado um quaquilhão de quilômetros, num per­curso que parecia ter tomado dias e dias, para viver com um bando de garotos bobocas; ainda nem tinha desfeito as malas; praticamente já tinha feito a minha mãe chorar; e de repente dou com um fantasma no meu quarto... Al­guém poderia me acusar de estar sendo... digamos, injus­ta com ele?
Olhe aqui - fui dizendo, levantando de um salto e pas­sando a perna por cima do encosto da cadeira. - Você pode ficar andando por aí o quanto quiser, amigo. Vai fundo. Não estou dando a mínima. Mas aqui, não.
Jesse - disse ele, sem se mexer.
O quê?
Você me chamou de amigo. Achei que gostaria de ficar sabendo que eu tenho um nome. Eu me chamo Jesse.
Eu fiz que sim com a cabeça.
Certo. Faz sentido. Muito bem então, Jesse. Você não pode ficar aqui, Jesse.
E você?
Jesse agora estava sorrindo para mim. Ele tinha um belo rosto. Uma cara boa. O tipo de rosto que no meu colégio antigo bastaria para ser eleito na hora o rei do baile. O tipo de rosto que a Gina recortava das revistas para colar na parede do quarto.
Não que ele fosse bonitinho. Não era mesmo. O que ele parecia mesmo era perigoso. E não era pouco, não.
E eu o quê? - retruquei, sabendo que estava sendo rude, mas não dando a mínima.
Como se chama?
Eu olhei bem fixo para ele.
- Olha aqui. Vai dizendo logo o que você quer e cai fora. Estou com calor e quero trocar de roupa. Não tenho tem­po para...
Ele me interrompeu com perfeita amabilidade, como se não estivesse me ouvindo:
Aquela mulher, sua mãe, chamou-a de Suzinha - disse ele, com os olhos negros brilhando para mim. - É apelido de Susan?
Suzannah - eu disse, corrigindo-o automaticamente. - Como naquela canção, "Não chore por mim".
Ele sorriu:
Eu conheço.
Isso aí. Provavelmente estava entre as 40 mais tocadas no ano em que você nasceu, certo?
Ele continuou sorrindo.
Quer dizer então que este agora é o seu quarto, Su­zannah?
Isso mesmo - respondi. - Isso aí, este agora é o meu quarto. De modo que você vai ter que se mandar.
Eu vou ter que me mandar? - fez ele, levantando uma sobrancelha. - Esta aqui é a minha casa há um século e meio. Por que eu teria de sair?
Porque sim - e eu já estava ficando realmente muito danada, em grande parte porque estava com tanto calor, e queria abrir uma janela, mas a janela estava atrás dele, e eu não queria me aproximar tanto assim. - Este quarto é meu. Não vou dividi-lo com um caubói morto.
Dessa vez ele entendeu direitinho. Levou o pé de volta ao piso, batendo com força, e se endireitou. Imediatamente eu lamentei ter dito o que disse. Ele era alto, bem mais alto que eu, e olhe que com minhas botas eu tenho um metro e setenta e cinco.
- Não sou nenhum caubói - informou ele, zangado. E acrescentou alguma coisa baixinho em espanhol, mas como eu sempre optara por francês na escola, não tinha a menor idéia do que ele estava dizendo. Ao mesmo tempo, o espe­lho antigo pendurado sobre minha nova penteadeira come­çou a balançar perigosamente no gancho que o prendia à parede. E eu sabia que aquilo não se devia a nenhum terremo­to californiano, mas à agitação do fantasma que estava na minha frente, cujos poderes, obviamente, eram do tipo telecinético, aquele negócio de mover coisas com a mente.
É este o problema com os fantasmas: eles são tão susce­tíveis! Ficam alterados ao menor motivo.
- Uaaau! - fiz eu, esticando os braços para cima, com as palmas das mãos voltadas para fora. - Menos! Calma aí, rapaz!
Todos na minha família - enfureceu-se Jesse, com o dedo em riste no meu rosto - trabalharam feito escravos para conseguirem alguma coisa neste país, mas nunca, nun­ca houve nela nenhum vaqueiro...
Ei! - interrompi, e foi aí que cometi o meu maior erro; muito irritada com aquele dedo na minha cara, eu o agarrei com toda força, torcendo sua mão e puxando-o para mim para ter certeza de que ele ia me ouvir dizer bem bai­xinho: - Pare com o espelho agorinha. E tira este dedo do meu nariz. Se fizer de novo, será um dedo quebrado.
Empurrei sua mão para o lado e constatei com satisfação que o espelho parará de balançar. Mas foi então que olhei para o seu rosto.
Fantasmas não têm sangue. E como poderiam ter? Pois se não estão vivos... Mas posso jurar que naquele momen­to o rosto de Jesse ficou completamente sem cor, como se cada gota de sangue que por acaso lá estivesse tivesse se evaporado de uma hora para outra.
Como não estão vivos nem têm sangue correndo nas veias, é claro que os fantasmas também não são feitos de matéria. De modo que não fazia o menor sentido que eu tivesse conseguido agarrar o seu dedo. Minha mão devia ter atravessado ele, certo?
Errado. É assim que acontece com a maioria das pessoas. Mas não com pessoas como eu. Com os mediadores não é assim. Nós vemos fantasmas, falamos com fantasmas e, se necessário, podemos perfeitamente dar um pontapé no tra­seiro de um fantasma.
Mas eu não gosto de sair por aí dizendo isto para todo mundo. Sempre tento o máximo possível não tocar neles - e aliás, não tocar em ninguém. Quando falham todas as tentativas de mediação e eu preciso recorrer a uma certa dose de coerção física com um espírito recalcitrante, geral­mente prefiro que ele ou ela não fique sabendo antes da hora que eu sou capaz disto. Os ataques inesperados são a melhor coisa quando estamos tratando com integrantes do outro mundo, que, como todo mundo sabe, sempre jogam sujo.
Olhando para o próprio dedo como se eu tivesse feito um buraco nele, Jesse parecia completamente incapaz de dizer o que quer que fosse. Provavelmente era a primeira vez em que ele era tocado por alguém em um século e meio. O tipo da coisa que pode deixar um sujeito de cabeça zon­za. Sobretudo um sujeito morto.
Aproveitando que ele estava atarantado, eu disse, com a voz mais firme e séria do mundo:
- Agora ouça bem, Jesse. Este quarto é meu, entendido? Você não pode ficar aqui. Ou você me deixa ajudá-lo a ir para onde deve estar ou vai ter de achar outra casa para as­sombrar. Sinto muito, mas é assim.
Jesse tirou os olhos do dedo, ainda com uma expressão de quem não está absolutamente acreditando.
- Mas quem é você? - perguntou, suavemente. - Que tipo de... garota é você?
Ele hesitou tanto tempo antes de conseguir dizer a palavra garota que pareceu claro que não estava certo de que fosse a palavra adequada no meu caso. Isto me deixou meio intriga­da. Afinal, eu posso não ter sido a garota mais popular da es­cola, mas ninguém nunca negou que eu fosse mesmo uma garota. Caminhoneiros buzinam para mim vez ou outra e não é porque querem que eu saia da frente. Peões de obra às vezes dizem coisas bem pesadas quando eu passo, especialmente se estou usando minha minissaia de couro. Eu não sou feiosa, nem de jeito nenhum masculinizada. É claro que eu tinha acabado de ameaçar quebrar o dedo dele, mas vamos e venha­mos, isto não queria dizer que eu não fosse uma garota!
- Pois vou dizer-lhe que tipo de garota eu não sou - fui dizendo, danada da vida. - O que eu não sou é o tipo de garota disposta a compartilhar o quarto com um membro do sexo oposto. Deu para entender? De modo que ou você se arranca ou eu vou botá-lo daqui para fora. Você decide. Vou lhe dar algum tempo para pensar. Mas quando voltar aqui, Jesse, não quero vê-lo mais.
Dei as costas e saí.
Não tinha outra saída. Geralmente eu não perco dis­cussão com fantasmas, mas tinha a impressão de que esta­va perdendo aquela, e feio. Eu não devia ter sido tão ríspi­da com ele, nem devia ter sido rude. Não sei o que me deu, realmente não sei. É que...
Acho que simplesmente eu não esperava encontrar o fantasma de um cara tão gracinha no meu quarto, só isso.
Meu Deus do céu, pensei enquanto descia as escadas, que vou fazer se ele não for embora? Não vou poder nem trocar de roupa no meu próprio quarto!
Dá um tempo pra ele, começou a dizer uma voz na mi­nha cabeça. Uma voz sobre a qual eu tomara o maior cuida­do de não dizer nada à terapeuta da minha mãe.
Dá um tempo pra ele. Ele vai entender. Eles sempre en­tendem.
Bom, quase sempre.

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