quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 5

A Academia Católica Junipero Serra havia sido inte­grada ao sistema oficial de ensino na década de 80, e para meu grande alívio desistira recentemente da obrigatoriedade do uniforme. Os uniformes eram azul real e branco, que não são exatamente as minhas cores favo­ritas. Felizmente, os uniformes eram tão impopulares que o colégio acabou desistindo deles, assim como acabara acei­tando meninas, e embora os alunos ainda não pudessem usar jeans, podiam vestir praticamente tudo que quisessem. O que me convinha perfeitamente, pois eu só estava inte­ressada em usar minha enorme coleção de roupas de grife, comprada em várias lojas de Nova Jersey com a ajuda de Gina como consultora de moda.
Mas o lado católico é que ia ser um problema. Não exa­tamente um problema, mais um transtorno. O negócio é que minha mãe nunca se preocupou em me educar dentro de alguma religião específica. Meu pai era judeu não-praticante e minha mãe, cristã. A religião nunca havia desem­penhado um papel importante na vida dos dois, e nem é preciso dizer que só servira para me confundir. O que es­tou querendo dizer é que qualquer um poderia imaginar que eu tivesse uma compreensão melhor da religião do que qualquer outra pessoa, mas a verdade é que eu não tenho a menor idéia do que acontece com os fantasmas que mando para onde deveriam ir depois de morrer. Só sei que depois que os mando para lá, eles não voltam. Nunca. Ponto final.
De modo que quando minha mãe e eu chegamos à admi­nistração do Colégio da Missão na segunda-feira posterior à minha chegada à ensolarada Califórnia, eu estava bastan­te incomodada com o enorme Jesus crucificado por trás da escrivaninha da secretária.
E aliás eu havia sido prevenida. Na manhã de domingo, minha mãe mostrara o colégio da janela, enquanto me aju­dava a desfazer as malas.
- Está vendo aquela grande cúpula vermelha? - per­guntou. - É a Missão. A cúpula é da capela.
Mestre estava ali por perto - eu já havia notado que ele fazia isto com muita freqüência - e começou a fazer mais uma das suas descrições detalhadas, desta vez sobre os franciscanos, membros de uma ordem religiosa católica que seguia os ensinamentos de São Francisco, oficializados em 1209. O padre Junipero Serra, um monge franciscano, era, segundo Mestre, um personagem histórico tragicamente mal interpretado. Herói polêmico da Igreja católica, a pos­sibilidade de sua santificação chegara a ser considerada em certa época, mas, segundo a explicação de Mestre, os indí­genas americanos contestaram a iniciativa, considerando-a "uma forma de aprovação das táticas de exploração da colonização espanhola. Embora se saiba que defendeu os direitos econômicos e de propriedade dos indígenas ameri­canos aculturados, Junipero Serra também militou ativamen­te contra seus direitos de ter um governo próprio e apoiou com intransigência os castigos corporais, recorrendo ao go­verno espanhol pelo direito de açoitar indígenas".
Quando Mestre acabou sua palestra, eu olhei para ele e perguntei:
- Memória fotográfica, hein? Ele ficou sem graça.
- Bom - respondeu. - É sempre bom conhecer a história do lugar onde a gente vive.
Arquivei aquilo na memória para o caso de necessidade no futuro. Mestre podia ser a pessoa indicada caso Jesse voltasse a aparecer.
Naquele momento, de pé ali no frio escritório do pré­dio antigo que Junipero Serra mandara construir para o progresso dos nativos da região, eu estava me perguntan­do quantos fantasmas encontraria. Aquele tal de Serra de­via ter um monte de indígenas fulos com ele - espe­cialmente levando-se em conta a história dos castigos corporais - e eu não tinha a menor dúvida de que ia en­contrar todos eles.
Apesar disso, quando minha mãe e eu atravessamos o grande pórtico frontal do colégio em direção ao pátio em torno do qual a Missão fora construída, não vi uma única pessoa que parecesse estar no outro mundo. Havia alguns turistas tirando fotos de uma bela fonte, um jardineiro tra­balhando ao pé de uma palmeira - pois havia palmeiras até no meu novo colégio -, um padre caminhando em atitude de silenciosa contemplação pela ventilada galeria. Era um lugar bonito e tranqüilo, especialmente considerando-se que se tratava de uma construção tão antiga, pela qual já deviam ter passado tantos mortos.
Eu não estava entendendo. Onde estavam os fantasmas?
Talvez eles tivessem medo de ficar por ali. Até eu estava meio assustada, diante daquele crucifixo. Não que eu tenha alguma coisa contra a arte religiosa, mas será que era mes­mo necessário retratar a crucificação de forma tão realista, com tantas feridas e tudo mais?
Aparentemente eu não era a única a pensar assim, pois um garoto que estava afundado num sofá em frente ao lugar onde minha mãe e eu havíamos sido instruídas a esperar percebeu que eu estava olhando naquela direção e disse:
- Dizem que ele chora lágrimas de sangue quando algu­ma garota daqui se forma ainda virgem.
Eu não consegui me impedir dar uma risadinha. Minha mãe fuzilou-me com o olhar. A secretária, uma mulher rechonchuda de meia-idade com ares de que uma coisa daque­las a ofendia profundamente, limitou-se a revirar os olhos e soltar, enfarada:
- Oh, Adam.
Adam, um garoto bonito mais ou menos da minha idade, olhou para mim com a cara mais séria:
- É verdade - disse, em tom grave. - Aconteceu no ano passado. Minha irmã - e acrescentou, baixinho: - Ela é adotada.
Eu achei graça de novo, e minha mãe franziu a testa para mim. Na véspera, ela passara a maior parte do dia me explicando que havia sido muito, muito difícil mesmo convencer o colégio a me aceitar, sobretudo porque ela não tinha um atestado de batismo meu para apresentar. No fim das contas, eles só tinham concordado com a mi­nha matrícula por causa do Andy, pois os três filhos dele estudavam lá. Acho que um donativo bem polpudo também contribuiu para eu ser aceita, mas minha mãe nunca me falaria de uma coisa dessas. Ela só disse que era melhor eu me comportar direito e não ficar jogando nada pelas janelas - embora eu insistisse com ela em que aquele inci­dente não fora culpa minha. Eu estava lutando com um jovem fantasma particularmente violento que se recusa­va a parar de perseguir as garotas no vestiário da minha antiga escola. Atirando-o pela janela, eu certamente con­seguira que me ouvisse e que se decidisse a tomar o bom caminho para todo o sempre.
Para minha mãe, claro, eu dissera que estava pratican­do tênis no vestiário e que a raquete escapulira da minha mão - uma história nada digna de crédito, pois nunca foi encontrada nenhuma raquete.
Eu estava relembrando esse episódio nada agradável quando se abriu uma pesada porta de madeira, entrou um padre e disse:
- Sra. Ackerman, que prazer vê-la de novo! Esta deve ser Suzannah Simon. Queiram entrar, por favor.
Ele nos conduziu ao seu gabinete, deteve-se um mo­mento e disse ao garoto que estava no sofá:
Mas já, McTavish? Logo no primeiro dia do semestre?... Adam deu de ombros:
- Que posso dizer? A baranga me odeia.
- Por favor não chame irmã Ernestine de baranga, McTavish. Vou atendê-lo daqui a pouco, depois de con­versar com estas senhoras.
Nós entramos, e o diretor, padre Dominic, conversou um pouco conosco, perguntando se eu estava gostando da Califórnia. Respondi que estava gostando muito, especial­mente do mar. Na véspera, nós havíamos passado o dia quase todo na praia, depois que eu acabei de desfazer as malas. Eu havia encontrado meus óculos escuros e, embo­ra estivesse muito frio para entrar na água e nadar, achei o máximo ficar simplesmente estendida na areia observando as ondas. Eram gigantescas, bem maiores que em SOS Malibu, e Mestre passou a maior parte da tarde me expli­cando o porquê. Já nem me lembro da explicação, pois es­tava tão zonza por causa do sol que nem conseguia prestar atenção. Descobri que gostava da praia, do seu cheiro, das algas que vinham dar na rebentação, da sensação da areia fresca entre os dedos do pé, do gosto de sal na pele quando voltava para casa. Carmel podia não ter um Bagel Bob's, mas Manhattan certamente não tinha uma praia.
Padre Dominic manifestou o sincero desejo de que eu me desse bem com a Academia da Missão e explicou que, embora eu não fosse católica, seria bem-vinda na missa. Claro que havia dias santos obrigatórios nos quais os alunos católicos tinham de deixar a aula para ir à igreja. Eu poderia acompanhá-los ou ficar sozinha na classe, conforme quisesse.
Achei aquilo meio engraçado, não sei bem por quê, mas consegui segurar o riso. Padre Dominic era um homem velho, mas alerta, e me pareceu alinhado com sua batina preta de gola branca - nada mau para um sessentão. Ele tinha cabelos brancos e olhos muito azuis, além de unhas muito bem tratadas. Não conheço muitos padres, mas achei que aquele podia ser bem legal, sobretudo porque não pegara pesado com o garoto que chamou a freira de baranga na secretaria.
Depois de falar de todas as infrações que podiam levar à expulsão do colégio - matar muitas aulas, vender drogas no campus, o de sempre -, padre Dominic quis saber se eu tinha alguma pergunta. Respondi que não. Ele fez a mes­ma pergunta a minha mãe. Ela também não tinha. Padre Dominic então levantou-se e disse:
- Muito bem. Vou me despedir da senhora e levar Su­zannah à sua primeira aula. Está bem assim, Suzannah?
Achei meio estranho que o diretor, que provavelmente tinha muito que fazer, estivesse se dando ao trabalho de me conduzir à minha primeira aula, mas não disse nada. Simplesmente peguei meu casaco - uma capa de lã negra da Esprit, très chic (minha mãe não me deixaria usar couro no primeiro dia no colégio) - e fiquei esperando enquanto ele e minha mãe se despediam. Minha mãe se despediu de mim com um beijo e me lembrou de ir ao encontro do Soneca às três horas, pois ele estava incumbido de me levar para casa - só que ela não o chamou de Soneca, claro. Mais uma vez a vergonhosa carência de transportes públicos sig­nificava que eu tinha de ficar indo e vindo da escola em companhia de meus meios-irmãos.
Minha mãe foi embora e padre Dominic estava me con­duzindo pelo pátio depois de dizer a Adam que o esperasse.
- Sem problema, padre - respondeu Adam, olhando de soslaio para mim por trás do padre. Não é todo dia que al­gum garoto da minha idade olha para mim de soslaio. Fiquei desejando que ele estivesse na minha classe. Os sonhos da minha mãe a respeito da minha vida social talvez pudessem finalmente realizar-se.
Enquanto caminhávamos, padre Dominic ia dando algu­mas explicações sobre o prédio - ou sobre os prédios, me­lhor dizendo, pois eram muitos. Várias construções de grossas paredes de tijolo cru eram interligadas por galerias de teto baixo, no meio das quais se encontrava o belo par­que com palmeiras, uma fonte borbulhante e uma estátua de bronze do padre Serra com mulheres aos seus pés - o perfeito estereótipo das índias peles-vermelhas com seus be­bês pendurados nas costas. - Do outro lado da galeria havia bancos de pedra, para que as pessoas pudessem contemplar tranqüilamente a beleza do pátio, além das portas das salas de aula e armários com cadeado embutidos na parede. Padre Dominic explicou que um deles era meu e que ele trazia consigo o segredo para abri-lo. Perguntou então se eu que­ria guardar meu casaco.
Ao acordar na manhã de domingo, eu me surpreendera tremendo de frio na cama. Tivera de sair com dificuldade de baixo das cobertas para fechar as janelas. Vi então, com desânimo, que uma espessa névoa envolvia o vale, impe­dindo que eu descortinasse a baía. Achei que com certeza alguma terrível tempestade tropical se aproximava, mas Mestre me explicou com toda paciência que aquela névoa matinal era comum na região noroeste e que o Oceano Pacífico tinha este nome por sua relativa ausência de tem­pestades. Mestre me garantiu que até meio-dia a névoa haveria de dispersar-se, e que a tarde seria tão quente quan­to na véspera.
E ele tinha razão. Quando voltei da praia, bronzeada e feliz, meu quarto virara um forno de novo e eu escan­carei a janela - para descobrir ao acordar hoje de manhã que tinha sido devidamente fechada de novo, o que me pareceu gracinha da parte da minha mãe, cuidar de mim assim.
Pelo menos eu esperava que tivesse sido minha mãe. Pois agora, pensando bem no assunto... mas não, eu não voltara a ver Jesse desde o dia da minha chegada. Definitivamente, minha mãe é que tinha fechado a janela do meu quarto.
Seja como for, ao sair de casa para entrar no carro de minha mãe, vi que estava fazendo frio de novo, e por isto é que estava usando minha capa de lã.
Padre Dominic me informou que meu armário era o número 273 e deixou que eu mesma o encontrasse, enquan­to passeava por ali com os olhos nos caibros das galerias, onde, para sua alegria, famílias inteiras de andorinhas se abrigavam todo ano. Ele parecia gostar muito de pássaros (e na verdade de todo tipo de animais, pois uma das perguntas que me fez foi para saber como eu estava me dando com Max, o cachorro dos Ackerman) e zombava abertamente toda vez que o Andy insistia em que a madeira das galerias teria de ser substituída por causa das andorinhas e seus dejetos.
268,269,270. Estava percorrendo o corredor aberto, olhan­do os números nas portas bege dos armários. Ao contrário do que acontecia no meu colégio no Brooklyn, ali os armários não estavam pichados, amassados ou cheios de adesivos de bandas heavy metal. Parece que na Costa Oeste os estudantes se preocupam mais com o aspecto de seu colégio.
271, 272. De repente, eu parei.
Em frente ao armário 273 havia um fantasma.
E não era o Jesse. Era uma garota, vestida de forma muito parecida com a minha, só que com cabelo louro comprido, em vez de castanho, como o meu. E tinha no rosto uma expressão muito desagradável.
- Que está olhando? - perguntou-me, para em seguida dirigir-se a alguém que estava atrás de mim: - É isto que eles estão trazendo para o meu lugar?
Tenho de reconhecer que ao ouvir isto eu surtei. Mais que depressa dei meia-volta e, quando vi, estava embasba­cada diante de padre Dominic, que apertava os olhinhos para mim com curiosidade.
- Ah - disse ele, ao ver minha expressão. - Era o que eu pensava.

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