quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 4

Jantar na casa dos Ackerman era igualzinho a jantar em qualquer outra casa de família grande que eu co¬nhecia: todo mundo falava ao mesmo tempo - menos, claro, Soneca, que só falava quando alguém lhe pergunta¬va alguma coisa - e ninguém queria tirar a mesa no fim. Programei meu cérebro para telefonar no dia seguinte para a Gina e dizer que ela estava errada. Eu não conseguia ver qual era a vantagem de ter irmãos: eles comiam com a boca aberta e acabavam com todos os croquetes antes que eu conseguisse chegar perto de um único.
Depois do jantar, resolvi que seria melhor não voltar para o quarto e deixar bastante tempo para o Jesse decidir se ia cair fora com ou sem os dentes. Não sou muito fã de violência, mas infelizmente é um dos ossos do ofício no meu caso. Às vezes a única maneira de fazer alguém ouvir é com os punhos. Reconheço que não é uma técnica recomendada pelos manuais usados pela maioria dos terapeutas para fazer seus diagnósticos.
Mas eu nunca disse mesmo que era uma terapeuta...
Meu plano só tinha um problema: era noite de sábado. Com todo o estresse da mudança, eu tinha esquecido que dia era. Numa noite de sábado comum em Nova York, eu provavelmente teria saído com a Gina, tomado o metrô para Greenwich Village para ir ao cinema ou simplesmente ficado ali pela Joe's Pizza vendo gente passar. Posso ser uma garota de cidade grande, mas isto não quer dizer que a mi¬nha vida lá fosse cheia de glamour. Eu nunca fui convida¬da para sair com um garoto, fora aquele dia na quinta série em que o Daniel Bogue me chamou para patinar no gelo com ele enquanto tocava uma música só para casais no ringue do Rockefeller Center.
E aí eu morri de vergonha ao cair de cara no gelo.
Mas a minha mãe não podia esperar a hora em que eu adentraria a vida social de Carmel. Mal havia enchido o lava-louças, e ela começou:
- Brad, o que você vai fazer hoje à noite? Tem alguma festa ou coisa assim? Quem sabe você levava a Suze e a apre¬sentava às pessoas?
Dunga, que estava preparando um shake de proteínas - aparentemente, as duas dúzias de camarões gigantes e o bife cavalar que ele comera no jantar não eram suficien¬tes - respondeu:
- É mesmo, quem sabe, se o Jake não fosse trabalhar hoje à noite...
Ouvindo seu nome, Soneca se sacudiu, enfiou a cara no relógio, soltou uma praga, pegou a jaqueta e foi saindo. Mestre olhou para o relógio e fez um "tsc,tsc":
- Atrasado de novo. Se não tomar cuidado, vai ser pos¬to na rua.
Mas o Soneca tinha um emprego? Era novidade para mim, e eu perguntei:
Onde ele trabalha?
Na Península Pizza.
Mestre estava fazendo alguma experiência esdrúxula com o cachorro e a bicicleta ergométrica da minha mãe. O ca¬chorro, que era gigantesco - um cruzamento de São Bernardo e urso, acho eu - estava pacientemente sentado no chão enquanto Mestre prendia eletrodos em pequenas clareiras que havia aberto em sua pele, raspando o pêlo. O mais es¬tranho de tudo é que ninguém parecia estar ligando, muito menos o cachorro.
- O Sone... quer dizer, o Jake está trabalhando em uma pizzaria?
Da cozinha, areando uma forma de bolo na pia, o Andy explicou:
Ele faz as entregas. Volta para casa com um monte de gorjetas.
Ele está economizando para comprar um Camaro - infor¬mou Dunga, com um grosso bigode branco de shake.
Ah... - disse eu.
Se quiserem que eu os deixe em algum lugar, terei o maior prazer - ofereceu-se Andy, generosamente. - E então, Brad? Vai mostrar à Suze como andam as coisas no shopping?
- Negativo - respondeu Dunga, limpando a boca com a manga do pulôver. - O pessoal ainda não voltou do feriado em Tahoe. Talvez na semana que vem.
Eu quase desmaiei de alívio. A palavra shopping invaria¬velmente me enchia de horror, horror que não tinha nada a ver com os "desmortos". Em Nova York não existem shoppings como os daqui, mas a Gina adorava pegar o trem para ir a Nova Jersey. Geralmente depois de uma hora eu ficava com os sentidos completamente transtornados e tinha de me sentar para tomar um chazinho de ervas até me acalmar.
E eu tenho de reconhecer que também não estava pro¬priamente encantada com a idéia de alguém me "deixar" em algum lugar. Minha nossa, que havia de errado com aquele lugar? Dava para entender perfeitamente por que não seria uma grande idéia implantar o metrô, consideran¬do-se as falhas geológicas que provocavam terremotos, mas por que não tinham criado um sistema decente de trans¬porte urbano em ônibus?
- Eu sei - disse Dunga, largando seu copo vazio. - Vou pôr uns jogos de Coolboarder para você, Suze.
Eu fiquei olhando para ele:
Você o quê?
Vou jogar Coolboarder com você - repetiu Dunga, logo perguntando, diante da minha expressão, que continuava igualmente espantada: - Nunca ouviu falar de Coolboarder? Ah, fala sério...
Levou-me então até a televisão. E logo ficou claro que Coolboarder era um videogame. Cada jogador tinha uma prancha de deslizar na neve, e ficavam todos correndo uns atrás dos outros em montanhas nevadas, usando uma ala¬vanca para controlar a velocidade das pranchas e fazer os movimentos mais incríveis.
Ganhei oito vezes do Dunga, até que finalmente ele disse:
- Chega disto, vamos ver um filme.
Percebendo que devia ter cometido um erro - provavel¬mente devia ter deixado o pobre garoto vencer pelo menos uma vez -, eu tentei melhorar a situação oferecendo-me para fazer a pipoca, e fui para a cozinha.
Só então é que me veio aquela onda de cansaço. A defasagem entre Nova York e a Califórnia é de três horas, e em¬bora ainda fossem 9 horas da noite, eu já me sentia como se fosse meia-noite. Andy e mamãe já se haviam retirado para o grande quarto principal, mas deixaram a porta bem aberta, provavelmente para ninguém pensar que estivessem fazendo algo errado. Andy estava lendo um romance de es¬pionagem e mamãe estava vendo um filme de televisão.
Eu tinha certeza de que aquilo era pura encenação para a criançada; na maioria das outras noites de sábado apos¬to que eles teriam fechado a porta, ou pelo menos teriam saído com os amigos de Andy ou os novos colegas de mamãe na estação de TV de Monterey onde tinha sido contratada. Era evidente que eles estavam tentando criar uma situação doméstica em que nos sentíssemos seguros. Mereciam pal¬mas por estarem dando o melhor de si.
Enquanto esperava que as pipocas estourassem, eu fi¬cava me perguntando o que meu pai diria de tudo aqui¬lo. Ele não tinha ficado propriamente entusiasmado com a idéia de mamãe voltar a se casar, muito embora Andy seja um cara sensacional, como eu já disse. E ficara ain¬da menos entusiasmado com minha transferência para a Califórnia.
Como é que eu vou me materializar para você quando estiver morando a quase 5 mil quilômetros de distância? - perguntara ele quando eu lhe contei.
A questão, pai, é que você não tem que ficar apare¬cendo para mim - respondi. - Você está morto, lembra? Tem de fazer o que as pessoas mortas fazem, em vez de ficar espionando a mim e a mamãe.
Ele pareceu ficar meio magoado.
Não estou espionando - disse. - Estou apenas dando uma olhada. Para saber se você está feliz, essas coisas...
Estou sim - garanti. - Estou muito feliz, e mamãe também.
Claro que eu estava mentindo. Não sobre a mamãe, mas sobre mim. Eu tinha ficado com os nervos em frangalhos ante a perspectiva de me mudar. Mesmo agora ainda não estava realmente certa de que a coisa ia funcionar. Aquela situação com o Jesse... Quer dizer: onde é que estava o meu pai, no fim das contas? Por que não estava lá em cima dan¬do um pontapé nos fundilhos daquele cara? Afinal de con¬tas, Jesse era um garoto, e estava no meu quarto, e os pais supostamente detestam esse tipo de coisa...
Mas é este o problema com os fantasmas. Eles nunca aparecem quando você realmente precisa deles. Nem mes¬mo quando são seu pai.
Acho que eu devo ter saído um pouco de órbita, pois quando vi, o microondas estava apitando. Tirei a pipoca e abri o pacote. Já estava jogando toda a pipoca numa grande gamela de madeira quando minha mãe entrou na cozinha e acendeu a luz do alto.
Oi, querida - disse ela, e depois olhou para mim. - Tudo bem com você, Suzinha?
Claro, mãe - respondi, levando um bocado de pipoca à boca. - O Dunga... quer dizer, Brad e eu vamos ver um filme.
Tem certeza? - insistiu ela, me olhando com curiosi¬dade. - Tem certeza de que está tudo bem?
- Sim, estou bem. Só um pouco cansada. Ela pareceu aliviada.
- Tudo bem então. Eu achava mesmo que você ia sentir o cansaço da viagem. Mas... bem, é que você parecia tão es¬tranha quando entrou pela primeira vez no seu quarto. Sei que a cama de dossel foi um pouco de exagero, mas não consegui resistir.
Fiquei só mastigando. Já estava totalmente acostumada a esse tipo de coisa.
A cama é perfeita, mãe - disse então. - O quarto tam¬bém é um barato.
Estou tão contente - disse ela, afastando uma mecha de cabelo dos meus olhos. - Fico tão contente que você te¬nha gostado, Suze.
Minha mãe parecia tão aliviada que de certa forma eu tive pena dela. Ela é uma mulher legal e não merecia uma filha mediadora. Eu sei que ela sempre se sentiu meio de¬cepcionada comigo. Quando eu fiz 14 anos, ela me deu uma linha telefônica própria, achando que tantos garo¬tos iam passar a me telefonar que suas amigas nunca iam conseguir falar com ela. Dá para imaginar como ficou decepcionada vendo que só a Gina telefonava para a mi¬nha linha particular, e ainda assim em geral para me con¬tar os encontros que ela tinha. Como já disse, os garotos do meu bairro nunca se interessaram muito em me con¬vidar para sair.
Pobre mamãe. Ela sempre quis ter uma filha adolescente legal e normal. Em vez disso, foi arranjar a mim.
- Amorzinho - disse ela -, não quer se trocar? Você está com essas roupas desde seis horas da manhã, não está?
Ela fez esta pergunta no exato momento em que Mestre ia entrando para pegar mais cola para seus eletrodos - embo¬ra eu não estivesse mesmo para responder algo do tipo "bom, para dizer a verdade, mamãe, gostaria mesmo de me trocar, mas não fico nada animada com a idéia de fazê-lo em frente do fantasma do caubói morto que está vivendo no meu quarto".
Em vez disso, eu dei de ombros e respondi, como quem não quer nada:
Sim, claro, vou mudar de roupa daqui a pouquinho.
Tem certeza de que não quer ajuda para desfazer as malas? Estou muito sem graça... Eu devia...
-Não, não preciso de ajuda. Vou desfazer as malas daqui a pouquinho - respondi, enquanto observava o Mestre vas¬culhando uma gaveta. - Mas agora vou indo. Não quero perder o início do filme,
Claro que no fim das contas acabei perdendo o início, o meio e o fim do filme. Caí no sono no sofá e só acordei um pouco depois das 11 com o Andy sacudindo o meu ombro.
- De pé e direto para a cama, guria - disse ele. - Acho que vai ter de confessar que não agüentou a parada. Não se preocupe. O Brad não vai contar para ninguém,
Eu me levantei, meio zonza, e fui para o quarto. Fui di¬reto até a janela e a escancarei. Para meu alívio, não havia nenhum Jesse no meio do caminho. Isso aí! Posso dizer que ainda dou conta do recado.
Apanhei minha nécessaire e fui para o banheiro. Tomei uma chuveirada e ali mesmo - só por garantia, pois não tinha certeza de que o Jesse entendera o recado e havia mes¬mo desaparecido - botei o pijama. Quando saí do banheiro, sentia-me um pouco mais desperta. Olhei ao redor, sentin¬do a brisa fresca que entrava, o ar salgado do litoral. Ao contrário do que acontecia no Brooklyn, onde nossos ou¬vidos estavam sendo constantemente atacados por sirenes e alarmes de carros, ali nas colinas era muito tranqüilo, e o único som de vez em quando era o pio de uma coruja.
Para minha surpresa, eu via que estava sozinha. Sozinha de verdade. Zona livre de fantasmas. Exatamente o que eu sempre quisera.
Caí na cama e bati palmas, para apagar as luzes. E me enfiei bem debaixo dos lençóis novinhos, que ainda pare¬ciam estalar.
Logo antes de cair no sono, achei que tinha ouvido algu¬ma coisa além da coruja. Parecia alguém cantando "Ó, Suzannah, não chores por mim, pois eu vim lá do Alabama tocando o meu bandolim".
Mas era só minha imaginação, tenho certeza.

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