quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 18

Não tenho a menor idéia de quanto tempo eu fiquei lá deitada debaixo das pranchas de madeira e das telhas quebradas do desmoronamento. Pensando bem, devo ter perdido a consciência, ainda que por alguns minutos apenas.
Só lembro de uma coisa dura batendo na minha cabeça, e quando vi estava tudo completamente escuro ao meu re­dor e parecia que eu ia sufocar.
Um dos truques favoritos de certos fantasmas é sentar-se no peito da vítima quando ela está despertando, para que a pobre coitada pense que está sendo sufocada sem saber por quê. Eu não estava entendendo direito o que es­tava acontecendo, e por alguns instantes cheguei a pensar que tinha fracassado e que a Heather ainda estava neste mundo, sentada no meu peito, torturando-me e se vingan­do do que eu tentara fazer.
Mas aí eu pensei que talvez estivesse morta.
Não sei por quê. Mas me ocorreu. Talvez fosse daquele jeito, estar morto. Pelo menos inicialmente. Era assim que a Heather devia ter-se sentido quando acordou no seu caixão. Devia ter-se sentido do mesmo jeito que eu naquela hora: presa, sufocada, paralisada pelo medo. Minha nossa, não é de estranhar que ela estivesse sempre tão mal-humorada. Ela só podia mesmo estar querendo voltar desesperada­mente para o mundo que conhecera antes de morrer. Aquilo era horrível. Era pior do que horrível. Era o inferno.
Mas aí eu mexi uma das mãos, a única parte do corpo que ainda conseguia mexer, e senti uma coisa áspera e fria sobre mim. Foi então que entendi o que havia acontecido. A galeria tinha desmoronado. A Heather tinha usado seu último restinho de poder de movimentar as coisas para me atingir. E tinha feito um belo trabalho, pois eu não conse­guia me mexer, presa debaixo de sabe-se lá quantos quilos de madeira e telhas espanholas.
Legal, Heather. Obrigada mesmo,
Eu devia estar com medo, pois estava completamente pa­ralisada, incapaz de me mexer, na mais total escuridão. Mas antes mesmo que pudesse entrar em pânico, ouvi alguém me chamando pelo nome. No início achei que podia estar ficando louca. Afinal, ninguém sabia que eu tinha ido ao colégio, exceto o Jesse, claro, e eu deixara bem claro para ele o que lhe aconteceria se aparecesse por lá. Ele não era burro. Sabia perfeitamente que eu ia fazer um exorcismo. Será que tinha decidido aparecer assim mesmo? Será que tudo já tinha se acalmado? Eu não sabia. E se ele entrasse no círculo de velas e sangue de galinha, será que seria sugado para o mesmo mundo de sombras que havia levado a Heather? Agora eu estava começando a entrar em pânico.
- Jesse! - berrei, esmurrando o pedaço de madeira que estava bem em cima de mim e recebendo no rosto uma pe­quena chuva de lascas de madeira e poeira. - Sai daí! - gritei. Aquela poeira toda estava me asfixiando, mas eu não me importava. - Vai embora! É perigoso!
De repente, um enorme peso foi retirado do meu peito e eu voltei a ver. Acima de mim estava o céu de um azul de veludo, salpicado de uma poeira de estrelas. E naquela mol­dura de estrelas um rosto se debruçava sobre mim com expressão preocupada.
- Ela está aqui! - gritou o Mestre, com a voz quase irreco­nhecível. - Jake, eu a encontrei!
Um outro rosto veio juntar-se ao primeiro, envolto numa moldura de longos cabelos loiros.
- Jesus Cristo - disse Soneca ao me ver, com a voz arras­tada. - Você está bem, Suze?
Eu fiz que sim com a cabeça, atordoada.
- Me ajudem a sair daqui - disse então.
Os dois conseguiram tirar de cima de mim os pedaços maiores de madeira. Depois o Soneca mandou que eu pas­sasse meus braços ao redor do seu pescoço, o que eu fiz, en­quanto o David me segurava pela cintura. Com os dois me puxando e eu empurrando com os pés, finalmente consegui me livrar dos escombros.
Ficamos um minuto sentados na escuridão do pátio, recostados no pedestal da estátua decapitada de Junipero Serra. Simplesmente ficamos ali, ofegando e olhando as ruí­nas do colégio. Bom, acho que estou exagerando um pouco. A maior parte do colégio ainda estava de pé. E por sinal o mesmo também acontecia com a maior parte da galeria. Só havia desabado a parte que ficava em frente ao armário da Heather e à sala de aula do professor Walden. Aquele monte de madeira retorcida convenientemente ocultava qualquer resquício de minhas atividades noturnas, inclusive as velas, que naturalmente haviam desaparecido. Não havia qualquer sinal da Heather. A noite parecia perfeitamente tranqüila, só ouvíamos nossa própria respiração. E os grilos.
Foi assim que eu fiquei sabendo que a Heather realmente tinha ido embora. Os grilos haviam voltado a cantar.
- Minha nossa! - voltou a dizer o Soneca, ainda ofegante. - Tem certeza de que está bem, Suze?
Voltei-me para ele. Ele estava usando apenas um par de jeans e uma jaqueta do exército, que tinha enfiado sem nem ter tempo para vestir antes uma camisa. Pude ver então que o Soneca tinha a mesma barriga de tanque que o Jesse.
Como é que eu podia quase ter morrido sufocada e ain­da estar ali minutos depois observando coisas como os mús­culos abdominais do meu meio-irmão?
- Claro - respondi, afastando uma mecha de cabelo dos olhos. - Eu estou bem. Talvez um pouco zonza, mas nada quebrado.
Talvez seja melhor levá-la para o hospital para um check-up - disse David com a voz ainda bem alterada. - Você não acha que é melhor levá-la para o hospital para um check-up, Jake?
Não - disse eu. - Nada de hospital.
Você pode ter tido uma concussão - insistiu David. - Ou uma fratura do crânio. Você pode até entrar em coma durante o sono e nunca mais voltar. Precisa pelo menos tirar uma radiografia. Talvez até seja bom uma tomografia...
Não - cortei, sacudindo a poeira do meu colante com as mãos e levantando-me. Meu corpo estava bem mal­tratado, mas inteiro. - Vamos. Vamos embora daqui antes que chegue alguém. Eles não podem deixar de ter ouvido tudo isto - prossegui, apontando com o queixo para a parte do complexo onde viviam os padres e as freiras. Em algu­mas janelas já se viam as luzes acesas. - Não quero que vocês tenham problemas.
Isso aí - concordou Soneca, levantando-se. - Mas você bem que podia ter pensado nisso antes...
Saímos do mesmo jeito que havíamos entrado. Como eu, David também passara por baixo do portão principal, destrancando-o por dentro para deixar o Soneca entrar. Saímos o mais discretamente possível e corremos para o Rambler, que o Soneca havia estacionado num lugar mais escuro, fora do raio de visão do carro da polícia. Este ain­da estava no mesmo lugar e seu ocupante não tinha sequer tomado conhecimento do que havia acontecido a algumas dezenas de metros de distância. Ainda assim, eu não queria correr nenhum risco, tentando passar despercebida por ele para pegar a bicicleta. Deixamos que ela ficasse lá, na esperança de que ninguém a encontraria.
No caminho para casa, meu novo irmãozão Jake ficou o tempo todo me passando sermão. Provavelmente ele esta­va pensando que eu estava no colégio no meio da noite participando de alguma cerimônia de gangue. Não estou brincando. Ele estava realmente furioso com a coisa. Queria saber se eu estava consciente do tipo de amigos que vinha freqüentando, gente disposta a me deixar morrer debaixo de um monte de telhas. Disse que se eu estivesse entedia­da ou em busca de emoções fortes o melhor que tinha a fazer era pegar uma prancha de surf e ir para a praia:
- Se é para rachar a cabeça ao meio, pelo menos que seja pegando uma onda, garota.
Agüentei aquele sermão com a maior elegância possí­vel. Afinal, eu não podia exatamente dizer a ele o real mo­tivo para estar no colégio àquela hora. Só interrompi o Jake uma vez durante seu discurso contra as gangues, para perguntar como ele e David tinham tido a idéia de ir me buscar.
- Não sei - respondeu Jake enquanto subíamos a rua. - Só sei que eu estava pegando pesado no sono quando de repente o Dave estava me sacudindo, dizendo que tínhamos de ir ao colégio para te encontrar. E como é que você sabia que ela estava lá, Dave?
O rosto do David estava excepcionalmente branco, mes­mo levando-se em conta a luz do luar.
- Não sei - respondeu ele tranqüilamente. - Acho que foi só uma intuição.
Voltei-me para ele, mas ele desviou o olhar.
E eu fiquei pensando: esse garoto está sabendo.
Mas eu estava cansada demais para falar a respeito naque­la hora. Entramos em casa, aliviados porque o único mora­dor que acordou com nossa chegada foi o Max, que ficou sacudindo o rabo e tentando nos lamber enquanto nos en­caminhávamos para nossos quartos. Antes de entrar no meu quarto, olhei para o David só uma vez, para ver se queria ou precisava dizer-me alguma coisa. Mas não. Ele simples­mente foi entrando no seu quarto e fechando a porta, como um menininho assustado. Meu coração se encheu de orgu­lho por ele.
Mas só durou um segundo. Eu estava cansada demais para pensar em alguma outra coisa que não fosse a cama - nem mesmo no Jesse. Amanhã de manhã, pensei, enquanto tirava minhas roupas cheias de poeira. Amanhã de manhã eu falo com ele.
Mas não falei. Quando acordei, a luz do lado de fora da minha janela estava estranha. Quando levantei a cabeça e vi o relógio, entendi por quê. Eram duas horas da tarde. Toda aquela bruma da manhã já se tinha dissipado e o sol castigava como se estivéssemos em pleno verão e não no mês de janeiro.
- Muito bem, hein, dorminhoca.
Olhei na direção da porta do quarto e lá estava o Andy, recostado no portal com os braços cruzados. Ele estava sorrindo, o que provavelmente queria dizer que estava tudo bem. Mas então o que eu estava fazendo na cama às duas horas da tarde de um dia de aula?
- Está se sentindo melhor? - quis saber o Andy.
Eu empurrei um pouco as cobertas. E se eu estivesse doente? Não seria nada difícil fingir. Eu estava mesmo me sentindo como se tivessem jogado uma tonelada de tijolos na minha cabeça.
O que, de certa forma, não estava muito longe da ver­dade.
Hmm - fiz eu. - Não muito.
Vou lhe trazer uma aspirina. Parece que o cansaço da viagem te pegou de jeito, hein! Como não conseguimos te acordar hoje cedo, decidimos deixá-la dormir. Sua mãe pediu que a desculpasse, mas teve de ir para o trabalho. Deixou-me cuidando das coisas. Espero que você não se importe.
Eu tentei sentar-me, mas estava difícil. Parecia que eu tinha sido espancada em cada músculo do corpo. Afastei o cabelo dos olhos e olhei para ele:
- Não precisava - disse. - Não precisava ter ficado em casa por minha causa.
Andy deu de ombros.
- Não faz mal. Praticamente não tenho conseguido falar com você desde que você chegou, e achei então que a gen­te podia botar a conversa em dia. Quer alguma coisa para almoçar?
No exato momento em que ele fez a pergunta, meu es­tômago deu um ronco. Eu estava morta de fome.
Ele ouviu e abriu um sorriso:
- Sem problema. Vista-se e desça. Vamos almoçar ao ar livre. O dia está lindo.
Precisei me esforçar para sair da cama. Eu estava de pija­ma e sem muita vontade de me vestir. De modo que ape­nas vesti um par de meias e um roupão, escovei os dentes e fiquei uns momentos olhando pela janela enquanto tenta­va desembaraçar o cabelo. A cúpula vermelha da igreja da Missão brilhava no sol. Por trás dela, dava para ver o mar reluzindo. À distância, ninguém diria que tanta destruição havia acontecido ali na noite anterior.
Não demorou e um delicioso cheiro de comida chegou lá da cozinha, e decidi descer a escada. Andy estava fazen­do sanduíches Reuben. Mas ele foi logo me expulsando da cozinha em direção ao enorme deque que tinha construí­do atrás da casa. A área estava inundada de sol e eu me estirei numa das chaises longues, me sentindo por alguns momentos como uma estrela de cinema. Pouco depois o Andy chegou com os sanduíches e uma jarra de limonada, e eu fui para a mesa com o pára-sol verde e mandei ver. Para um não nova-iorquino, até que o Andy fazia um Reuben razoável.
Ele passou bem uma meia hora me fazendo um verda­deiro interrogatório... mas não sobre o que havia aconteci­do na noite da véspera. Para minha surpresa, Soneca e Mestre tinham ficado de boca fechada. Andy estava completamente por fora do que tinha acontecido. Só queria saber se eu es­tava gostando do colégio, se estava feliz, blablablá...
Só tinha um detalhe. Enquanto me perguntava se eu estava gostando da Califórnia, e se era realmente tão dife­rente assim de Nova York (sorvetão), ele acabou dizendo:
- Quer dizer então que você dormiu tranqüilamente du­rante o seu primeiro terremoto...
Eu quase me engasguei.
O quê?
O seu primeiro terremoto. Houve um terremoto esta noite, por volta das duas horas. Não foi dos mais fortes, apenas uns quatro graus, mas o suficiente para me acordar. Nada foi destruído, exceto lá na Missão. A galeria desmoronou. O que aliás não deve ter surpreendido. Há anos eu venho avisando os padres sobre o perigo daquela madeira. É quase tão antiga quanto a própria Missão. Não se podia esperar mesmo que durasse para sempre.
Eu estava mastigando mais devagar. Minha nossa. A des­pedida da Heather devia mesmo ter dado umas boas sacu­didelas, para se fazer sentir daquele jeito por todo o vale e até nas colinas.
Mas isto ainda não explicava por que o David decidira ir me procurar no colégio.
Eu tinha voltado para o quarto e estava no assento da janela folheando uma revista de moda bem bobinha, tentan­do imaginar onde o Jesse tinha ido parar, quanto tempo ainda teria de esperar até que ele voltasse a aparecer para me fazer mais um dos seus sermões e se ele ainda seria ca­paz de me chamar novamente de hermosa, quando os garo­tos chegaram do colégio. Dunga passou direto pelo meu quarto (ele ainda não tinha me perdoado por ter ficado de castigo) mas o Soneca mostrou a cabeça, viu que eu estava bem e foi embora, balançando a cabeça. O único a bater na porta foi o David. Eu o convidei a entrar, e ele entrou, ti­midamente.
Trouxe o seu dever de casa. O professor Walden me deu para entregar a você. Mandou dizer que espera que você esteja melhor.
Puxa - disse eu. - Obrigada, David. Pode deixar aí na cama.
Foi o que ele fez. Mas em vez de se retirar, ele ficou ali, olhando para a guarda da cama. Percebi que estava queren­do dizer alguma coisa e fiquei calada, esperando que ele re­solvesse se abrir,
Cee Cee mandou um beijo - disse ele. - E aquele ou­tro cara também, o Adam McTavish.
Legal - respondi.
Fiquei esperando. David não me desapontou.
Está todo mundo comentando - foi dizendo.
Comentando o quê?
Você sabe. O terremoto. Que a Missão deve estar bem em cima de alguma falha geológica que ainda era desconhe­cida, pois o epicentro parece ter sido... bem do lado da sala de aula do professor Walden.
Eu fiz apenas "hmm" e virei a página da revista.
- Quer dizer então que você nunca vai me contar?... - fez o David.
Eu nem olhei para ele.
Contar o quê?
O que está acontecendo. Por que você estava no colégio no meio da noite. Como a galeria desmoronou. Tudo isso.
É melhor você não ficar sabendo - respondi, virando a página. - Confie em mim.
Mas não tem nada a ver com... com o que o Jake disse, certo? Essa história de gangue.
Não - respondi.
Olhei então para ele. O sol, entrando pela janela, res­saltava o rosado da sua pele. Aquele garoto, com seus ca­belos ruivos e as orelhas pontudas, tinha salvo a minha vida. Eu lhe devia uma explicação, era o mínimo que po­dia fazer.
Eu vi, sabia? - disse David.
Viu o quê?
O fantasma.
Ele estava olhando para mim, pálido e intenso. Parecia sério demais para um guri de doze anos.
Que fantasma? - perguntei.
O que vive aqui. Neste quarto. - Ele olhou ao redor, como se esperasse encontrar o Jesse em algum cantinho do meu ensolarado quarto. - Ele me procurou esta noite. Juro. Me acordou. Ficou me falando sobre você. Foi assim que fiquei sabendo. Foi assim que eu soube que você estava enrascada.
Fiquei olhando para ele de queixo caído. O Jesse? O Jesse tinha contado para ele? O Jesse o tinha acordado?
- Ele não me deixava em paz - prosseguiu David, com a voz trêmula. - Ele ficava... me tocando. No ombro. Era frio e reluzia. Era apenas uma coisa fria e reluzente, e den­tro da minha cabeça uma voz ficava me dizendo que eu tinha de ir ao colégio para te ajudar. Não estou mentindo, Suze. Juro que aconteceu realmente.
- Eu sei, David - disse eu, fechando a revista. - Acredito em você.
Ele já estava de novo com a boca aberta para jurar ou­tra vez que era tudo verdade, mas ao me ouvir dizer que acreditava nele voltou a fechá-la. Só voltou a abri-la para perguntar, meio desconfiado:
Acredita mesmo?
Acredito - respondi. - Não pude dizer ontem à noite mas estou dizendo agora. Obrigada, David. Você e o Jake salvaram a minha vida.
Ele estava tremendo. Precisou sentar na minha cama, caso contrário poderia até cair.
- Então... - disse ele. - Então é verdade? Quer dizer que foi mesmo o... o fantasma?
-Foi.
Ele ficou um tempo digerindo a resposta.
E por que você estava no colégio?
É uma longa história - respondi. - Mas juro que não tinha nada a ver com gangues.
Ele ficou piscando para mim.
Então tem a ver com... o fantasma?
Não o que te visitou. Mas tinha mesmo a ver com um fantasma.
Os lábios do David se mexeram, mas acho que ele não estava muito consciente de estar falando. Da sua boca saiu aquela pergunta espantada:
Existe mais de um?
Ah, muito mais de um - respondi. Ele continuava olhando fixo para mim.
E você... você é capaz de vê-los?
- David - disse eu então -, não é uma coisa que eu me sinta à vontade para comentar...
- Você viu o da noite passada? O que foi me acordar?
- Sim, David. Eu o vi.
- E sabe quem é? Sabe como ele morreu? Eu balancei a cabeça.
Não. Não se lembra? Você ia investigar para mim. Ele pareceu despertar.
- Ah, claro! Esqueci. Estive consultando uns livros on­tem. Espere um minuto só. Não saia daí.
Ele saiu correndo do quarto, já completamente esqueci­do do choque que acabara de sofrer. Eu fiquei exatamente onde estava, como ele havia pedido. Fiquei me perguntando se o Jesse estava por ali ouvindo. E achei que seria muito bom para ele se estivesse.
Segundos depois o David estava de volta, trazendo uma pilha de enormes livros empoeirados. Pareciam muito ve­lhos, e quando ele sentou ao meu lado e começou a folheá-los sofregamente, eu vi que eram mesmo muito antigos. Nenhum deles tinha sido publicado depois de 1910. O mais antigo tinha sido publicado em 1849.
Veja - disse David, folheando um grande volume en­cadernado em couro intitulado A minha Monterey, de um certo coronel Harold Clemmings. O estilo narrativo do coronel era dos mais maçantes, mas o livro tinha ilustrações, o que não deixava de ajudar, embora fossem em preto-e-branco.
Veja - voltou a dizer o David, mostrando a reprodução de uma fotografia da casa em que estávamos. Só que ela estava muito diferente, sem a varanda nem a garagem. As árvores ao redor também eram bem menores. - Olha só, é a casa quando ainda era um hotel. Ou uma estalagem, como diziam na época. Está dizendo aqui que a casa tinha péssi­ma fama. Muitas pessoas foram assassinadas aqui. Esse coro­nel Clemmings conta uma porção de detalhes. Você acha que o fantasma que veio falar comigo ontem à noite é uma delas? Uma das pessoas que morreram aqui?
Bem - disse eu -, muito provavelmente.
David começou a ler em voz alta - depressa e de uma maneira inteligente, sem tropeçar nas palavras antigas mais difíceis - as diversas histórias das pessoas que tinham mor­rido na Casa da Colina, como a chamava o coronel Clemmings.
Mas nenhuma daquelas pessoas chamava-se Jesse. Ne­nhuma delas nem de longe se parecia com ele. Ao termi­nar, David olhou para mim cheio de expectativa:
- Talvez seja o fantasma daquele dono de lavanderia chinês - disse. - O tal que levou um tiro porque aquele janota não achava que ele estava lavando direito as suas camisas.
Eu sacudi a cabeça.
Não. O nosso fantasma não é chinês.
Ah... - e David voltou a consultar o livro. - E este aqui? O tal que foi morto pelos escravos...
Acho que não - disse eu. - Ele tinha apenas um metro e sessenta de altura.
E este outro aqui? O dinamarquês que foi apanhado trapaceando nas cartas e levou um tiro...
Ele não é dinamarquês - respondi, dando um suspiro. David franziu a boca.
Então o que ele era? Eu balancei a cabeça.
- Não sei. Tem alguma coisa de espanhol. E também... - mas eu não queria ficar falando disso bem ali no meu quarto, onde o Jesse podia estar ouvindo, aqueles detalhes sobre os olhos úmidos e os longos dedos morenos...
Quer dizer, eu não queria que ele ficasse achando que eu gostava dele ou coisa assim.
Foi aí que eu lembrei do lenço. Quando acordei na ma­nhã seguinte, depois de lavar o sangue, ele tinha desapa­recido, mas eu ainda lembrava as iniciais. MDS.
- Essas letras te dizem alguma coisa?
Ele ficou pensando por uns momentos. Depois fechou o livro do coronel Clemmings e abriu um outro, ainda mais velho e empoeirado. Era tão antigo que o título havia de­saparecido da lombada. Mas quando David o abriu, pude ver o título na folha de rosto: A Vida no norte da Califórnia de 1800 a 1850.
David percorreu o índice no fim do volume e falou:
A-ráá!
A-rá o quê? - perguntei.
Exatamente o que eu havia pensado - respondeu ele, buscando uma das últimas páginas do livro. - Aqui - prosseguiu. - Eu sabia. Tem uma fotografia dela.
Ele me entregou o livro, mostrando uma página recoberta por um tecido.
O que é isto? - perguntei. - Para que este lenço de pa­pel?
Não é lenço de papel. É papel de seda. Eles usavam para proteger as fotos nos livros. Pode levantar.
Eu levantei o tecido. Por baixo dele havia a reprodução em preto-e-branco de uma pintura, em papel brilhante. Era um retrato de mulher. Embaixo, a inscrição: Maria de Silva Diego, 1830-1916.
Meu queixo caiu. MDS! Maria de Silva!
Ela parecia mesmo do tipo que levava um lenço como aquele na manga do vestido. Estava usando um vestido branco cheio de babados - ou pelo menos parecia branco na foto - com seus lustrosos cabelos negros colhidos em bandós dos dois lados da cabeça e uma enorme jóia antiga daquelas bem caras presa a uma corrente de ouro em seu longo pescoço. Era uma bela mulher de ar altivo, olhando para um dos lados com uma expressão que se poderia di­zer de... de desprezo.
Olhei para o David.
- Quem era ela? - perguntei.
- Simplesmente a garota mais famosa da Califórnia na época em que esta casa foi construída - disse ele, tirando o livro da minha mão e voltando a folheá-lo. - Na época, o seu pai, Ricardo de Silva, era praticamente o dono de toda a região de Salinas. Ela era sua única filha e tinha um dote e tanto. Mas não era por isto que os caras queriam casar com ela. Ou pelo menos não era o único motivo. Naquela época, uma garota como ela era realmente considerada bonita.
Eu disse:
Mas ela é mesmo muito bonita. David olhou para mim com um risinho:
É, isso mesmo.
Sim, muito bonita mesmo.
David viu que eu estava falando sério e deu de ombros.
- Não importa. O pai queria que ela casasse com um fa­zendeiro rico, um primo que estava perdidamente apaixona­ do por ela, mas ela só pensava nesse outro cara chamado Diego. - Ele consultou o livro. - Felix Diego. O sujeito era a maior roubada, traficante de escravos. Pelo menos era o que fazia antes de vir para a Califórnia para ficar rico na corrida do ouro. E o pai da Maria era contra a escravidão, aliás, também contra a corrida do ouro. De modo que Maria e o pai entraram em conflito para saber com quem ela ia se casar, o primo ou o traficante de escravos, até que o pai avisou que ia deserdá-la se ela não casasse com o primo. Foi o bastante para Maria tomar uma decisão rapidinho, pois ela gostava muito de dinheiro. Tinha aproximadamente uns sessenta vestidos, numa época em que a maioria das mulheres tinha apenas dois, um para o trabalho e outro para a igreja.
- E o que aconteceu? - interrompi. Não estava dando a mínima para quantos vestidos aquela mulher tinha. Só que­ria saber onde entrava o Jesse.
David voltou a consultar o livro.
O mais incrível é que no fim das contas a Maria con­seguiu o que queria.
Como assim?
- O primo não apareceu para o casamento. Eu fiquei olhando:
- Não apareceu? Como assim, não apareceu?
Exatamente isto. Ele nunca mais apareceu. Ninguém sabe o que aconteceu com ele. Ele deixou seu rancho al­guns dias antes do casamento, para chegar a tempo ou qual­quer coisa assim, e ninguém mais teve notícias dele. Nunca mais. Ponto final. Neca de pitibiriba.
E... - eu sabia a resposta, mas mesmo assim tinha de perguntar. - E o que aconteceu com a Maria?
Ah, ela casou com o traficante de escravos caçador de ouro. Claro que depois de deixar passar um certo tempo. Naquela época essas coisas tinham mil regras. O pai dela ficou tão decepcionado com o primo que acabou dizendo à Maria que podia fazer o que quisesse, e que se danasse. Foi o que ela fez. Mas não se danou nem um pouquinho. Ela e o traficante de escravos tiveram 11 filhos, herdaram as propriedades quando o pai dela morreu e souberam ad­ministrá-las muitíssimo bem...
Eu levantei a mão.
Espera aí. Como se chamava o primo? David consultou o livro.
Hector.
Hector?
- Sim - respondeu David, olhando de novo no livro. - Hector de Silva. Mas a mãe chamava-o de Jesse.
Quando voltou a levantar os olhos, ele deve ter visto algo estranho na minha expressão, pois perguntou, com uma vozinha miúda:
É o nosso fantasma?
É o nosso fantasma - respondi, calmamente.

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