quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 6

Desviei o olhar do padre Dominic para o fantasma da garota e voltei a olhar para ele. Finalmente, consegui balbuciar:
- O senhor consegue vê-la? Ele fez que sim.
- Sim. Quando sua mãe me falou de você e dos seus... problemas no colégio, eu desconfiei que você podia ser uma das nossas, Suzannah. Mas não tinha certeza, naturalmente, e por isto nada disse. Muito embora o nome Simon, como você deve saber, venha da palavra hebraica que quer dizer "ouvinte atento", algo que você naturalmente deve ser tam­bém, como mediadora...
Eu mal conseguia ouvi-lo. Ainda precisava me acostu­mar ao fato de finalmente ter encontrado outro mediador, depois de todos aqueles anos.
Então é por isto que não há espíritos de indígenas por aqui! - disse eu, praticamente gritando. - O senhor cuidou de­les. Minha nossa, eu estava tentando imaginar o que havia acontecido com todos eles. Esperava encontrar centenas...
Padre Dominic abaixou a cabeça modestamente e disse:
- Bem, não eram centenas, exatamente, mas quando cheguei aqui havia mesmo uma boa quantidade. Mas não era nada, no fundo. Apenas cumpri o meu dever, fazendo uso do dom celestial que recebi de Deus.
Eu fiz cara de espanto. É isto que permite conseguir es­sas coisas?, pensei.
- Mas é claro que se trata de um dom que recebemos de Deus.
Padre Dominic me olhava com aquele tipo de piedade que os fiéis sempre demonstram conosco, pobres e patéti­cas criaturas cheias de dúvidas.
De onde mais você acha que poderia vir?
Não sei. De certa forma eu sempre quis ter uma con­versa com o responsável, entende? Pois se pudesse escolher eu preferiria de longe não ter sido abençoada com este dom.
Padre Dominic pareceu surpreso:
Mas por quê, Suzannah?
Só serve para me criar problemas. O senhor tem idéia de quantas horas eu já passei em consultórios de psiquia­tras? Minha mãe está convencida de que eu sou completamente esquizofrênica.
Sim - concordou padre Dominic, pensativo. - Com­preendo que um dom milagroso como o seu possa ser considerado por uma pessoa leiga como... digamos, incomum.
Incomum? O senhor está brincando comigo?
Reconheço que aqui na missão eu posso contar com uma proteção - admitiu padre Dominic - Nunca me ocor­reu que deve ser extremamente difícil para vocês que es tão... bem, na linha de frente, por assim dizer, sem um efe­tivo apoio eclesiástico...
Vocês? - fiz eu, levantando as sobrancelhas. - O se­nhor está dizendo que não somos só nós dois?
Ele pareceu surpreso.
Bem, eu presumi... certamente não somos só nós dois. Não é possível que sejamos os últimos. Não, não, certamente há outros.
Desculpem-me - interrompeu o fantasma, olhando-nos com sarcasmo. - Será que se importavam de me dizer o que está acontecendo? Quem é esta perua? É ela que vai tomar o meu lugar?
Ei! Veja como fala! - retruquei, fulminando-a com os olhos. - Você está na presença de um padre!...
Ela sorriu com escárnio para mim:
- É mesmo, é? E eu não sei que ele é um padre? Ele pas­sou a semana inteira tentando se livrar de mim.
Eu olhei para o padre Dominic com ar de surpresa, e ele disse, embaraçado:
Bem, é que a Heather está sendo um tanto obstinada...
Se está pensando - interferiu Heather com sua vozinha ranheta - que eu vou ficar aqui de braços cruzados deixando que você entregue o meu armário a esta perua...
- Se me chamar de vagabunda mais uma vez, coisinha, vai passar o resto da eternidade dentro deste seu armário - avisei.
Heather me olhou sem a mais leve sombra de medo.
- Perua - disse então, esticando bem a palavra.
Eu a acertei tão rápido que ela nem viu o meu punho chegando. Foi um murro tão forte que ela saiu rolando pelos armários enfileirados, fazendo mossa nas portas. Foi cair de cara lá adiante no piso de pedras, mas um segundo depois já estava de pé novamente. Eu esperava que ela revidasse, mas em vez disso Heather deu um gemido e saiu correndo pelo corredor. "Não é de nada", falei, mais para mim mesma.
Claro que ela voltaria. Eu apenas a havia assustado. Ela voltaria. Mas provavelmente quando voltasse a vê-la ela teria de adotar uma atitude ligeiramente diferente.
Livre da Heather, eu soprei as juntas dos dedos. Os fan­tasmas podem ter maxilares bem resistentes.
- Então, padre, o que estava mesmo dizendo? - perguntei. Ainda com os olhos no ponto em que Heather estivera antes, padre Dominic observou, algo secamente para um padre:
- Estão ensinando técnicas de mediação bem interes­santes hoje em dia...
- Ora - respondi -, ninguém pode me xingar assim e fi­car por isso mesmo. Não ligo nem um pouco para o quan­to pode ter sofrido na vida anterior.
- Acho que precisamos conversar sobre certas coisas - disse padre Dominic, pensativo.
Levou então um dedo aos lábios. Uma porta abriu-se ao lado e um homem corpulento, o rosto coberto por uma bar­ba cerrada, olhou na direção da galeria, pois tinha ouvido o impacto do corpo astral de Heather nos armários de me­tal - engraçado como os mortos podem ser pesados.
Está tudo bem, Dom? - perguntou, ao ver padre Do­minic.
Tudo bem, Carl. Tudo certo. E veja o que eu trouxe para você - respondeu padre Dominic, pondo a mão no meu ombro. - Sua nova aluna, Suzannah Simon. Suzannah, este é o seu professor, Carl Walden.
Eu estendi a mão com que acabara de esmurrar Heather:
- Como vai, sr. Walden?
- Vou bem, srta. Simon, muito bem.
Minha mão desapareceu dentro da manopla do profes­sor Walden. Ele não parecia muito um professor. Parecia mais um lenhador. Precisou até se apertar contra a parede para permitir que eu me esgueirasse para dentro da sala de aula.
Que bom que você vai ficar conosco - disse ele com seu vozeirão ressonante. - Obrigado por acompanhá-la, Dom.
Não há de quê - respondeu padre Dominic. - Tivemos aqui um pequeno problema com o armário dela. Você provavelmente ouviu. Não quis atrapalhá-lo. Vou pedir que o zelador dê uma olhada. Depois, Suzannah, espero-a de volta no meu gabinete às três horas para... para acabar de preencher aqueles formulários. Eu sorri carinhosamente para ele:
- Não vai ser possível, padre. Minha carona sai às três... Padre Dominic fechou a cara para mim:
- Neste caso, Vou mandar um passe para você. Por vol­ta de duas horas.
- OK - respondi, dando té-loguinho com os dedos para ele. - Tchau.
Tenho a impressão de que na Costa Oeste não se dá té-loguinho para o diretor nem se diz tchau para ele, pois quando me virei na direção dos meus novos colegas de tur­ma, estavam todos me olhando de boca aberta.
Talvez fosse a minha roupa. Eu estava usando um pouco mais de preto que de costume, por causa da tensão nervosa. Quando estiver em dúvida, costumo dizer, use preto. Com o preto nunca tem erro.
Ou talvez tenha. Pois ao dar com todas aquelas caras de espanto não vi uma única roupa preta. Muito branco, al­guns marrons e uma quantidade de cáquis, mas nenhum preto.
Gulp...
O professor Walden não pareceu perceber o meu mal-estar. Apresentou-me à turma e me convidou a explicar-lhes de onde vinha. Foi o que eu fiz, e todo mundo ficou me olhando com cara de tacho. Comecei a sentir um suorzinho escorrendo pela nuca. Tenho de reconhecer que às vezes prefiro a companhia dos mortos à companhia dos colegas. Gente de 16 anos pode ser mesmo assustadora.
Mas o professor era um bom sujeito. Só me deixou ali debaixo daqueles olhares todos durante um minuto, depois mandou-me sentar.
Parece algo simples, certo? Simplesmente tome o seu lu­gar. Mas o problema é que havia dois assentos. Um deles era ao lado de uma garota bronzeada linda, com uma es­pessa e encaracolada cabeleira de um louro queimado. O outro ficava bem lá no fundo, atrás de uma garota de ca­belo tão branco e pele tão cor-de-rosa que só podia ser albina.
Isto mesmo, não estou brincando. Uma albina.
Minha decisão foi influenciada por dois fatores. O pri­meiro foi que, ao ver o assento lá no fundo, percebi que as janelas, que ficavam logo atrás dele, davam para o esta­cionamento do colégio.
Tudo bem, não chegava a ser uma vista maravilhosa, mas depois do estacionamento tinha o mar.
Não estou brincando. Aquele colégio, meu novo colé­gio, tinha uma vista do Pacífico ainda melhor que a do meu quarto, pois ficava muito mais perto da praia. Das janelas da minha sala de aula era possível ver perfeitamente as on­das. Eu queria me sentar o mais perto possível da janela.
O segundo motivo para me sentar ali era simples: não queria ficar do lado da garota bronzeada e fazer a garota albina pensar que não queria ficar perto de alguém com aparência tão esquisita... Bobagem, não é mesmo? Como se ela estivesse dando alguma importância para o que eu fazia. Mas eu nem hesitei. Vi o mar, vi a garota albina e lá fui eu.
Assim que me sentei, claro, uma outra garota deu uma risadinha e sussurrou baixinho, mas de forma perfeitamente audível:
- Caramba, foi sentar logo perto da esquisita!...
Eu olhei para ela. Tinha uma cabeleira impecável e olhos impecavelmente pintados. E disse, sem me preocupar em falar baixinho:
- Desculpe, você sofre de Tourette?
O professor voltara-se para escrever alguma coisa no quadro-negro mas se deteve ao ouvir minha voz. Todos se voltaram em minha direção, inclusive a garota que tinha feito o comentário.
O quê? - fez ela, apertando os olhos.
Síndrome de Tourette - continuei. - É uma doença neu­rológica que faz as pessoas dizerem coisas que não querem dizer. Você tem isso?
O rosto da guria começara a ficar vermelho: -Não.
Ah!... Então estava mesmo sendo grosseira de pro­pósito...
Eu não estava chamando você de esquisita - justificou-se ela rapidamente.
Sei perfeitamente - prossegui. - Por isto é que depois da aula vou quebrar apenas um dedo seu, e não todos eles.
Ela se virou rapidinho para a frente. E eu sentei no meu lugar. Não sei o que todo mundo começou a cochichar de­pois disso, mas pude ver que a cabeça da albina - perfeita­mente visível por baixo do branco dos seus cabelos - tornara-se roxa, tão sem graça ela havia ficado. O professor teve que mandar que todos se comportassem, e como foi ignorado deu um murro na mesa e foi avisando que se tínhamos tan­ta coisa a dizer, poderíamos dizer numa redação de mil palavras sobre a batalha de Bladensburgo na guerra de 1812, espaço duplo, na mesa dele amanhã cedinho.
Puxa vida. Ainda bem que eu não estava no colégio para fazer amigos.

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