quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 7

Mas no fim das contas eu fiz amigos sim. Não que eu fizesse força. Eu nem queria mes¬mo. Já tenho amigos suficientes lá no Brooklyn. Tenho a Gina, a melhor amiga que alguém poderia ter. Não precisava de mais amigos.
E não achava realmente que alguém aqui fosse gostar de mim - muito menos depois de terem sido obrigados a fa¬zer uma redação de mil palavras por causa do que aconte¬ceu depois que eu cheguei. E muito menos ainda depois do que aconteceu quando fomos informados de que tinha chegado a hora do segundo período - a Academia da Missão não tinha sirene, nós trocávamos de sala de hora em hora o tínhamos cinco minutos para chegar ao destino. Mal o professor Walden nos dispensou a menina albina virou-se na cadeira e me perguntou, com os olhos brilhando de rai¬va por trás das lentes de cor dos óculos:
E agora por acaso espera que te agradeça pelo que você disse para a Debbie?
Por mim você não tem que agradecer coisa nenhuma - respondi, levantando-me.
Ela também se levantou:
Mas foi por isto que você fez aquilo, não foi? Defen¬dendo a albina... Por acaso sentiu pena de mim?
Eu fiz aquilo porque a Debbie é uma mala - disse eu, dobrando a capa no braço.
Vi que os cantos dos seus lábios se repuxavam. Debbie agarrara os livros e praticamente correra em direção à por¬ta no exato instante em que o professor Walden nos dis¬pensara. Ela e um bando de outras garotas, entre as quais a bonitinha bronzeada que também tinha um assento vazio ao lado, estavam cochichando e me lançando olhares ful¬minantes por cima de seus suéteres Ralph Lauren.
Dava para ver que a garota albina ficou com vontade de rir quando eu chamei a Debbie de mala, mas ficou firme. Disse então, toda cheia de orgulho:
- Posso perfeitamente me defender sozinha, viu? Não preciso da sua ajuda, Nova York.
Eu dei de ombros.
- Tudo bem por mim, Carmel.
Desta vez ela não conseguiu deixar de sorrir. Ao fazê-lo, mostrou uma fieira de aparelhos dentários que reluziam tanto quanto o mar lá fora.
Cee Cee - disse ela.
O que é Cee Cee?
- Meu nome. Sou a Cee Cee - completou, estendendo a mão branca feito neve, com as unhas pintadas de laranja chocante. - Bem-vinda à Academia da Missão.
Às 9 horas, o professor Walden já nos havia dispensado. Dois minutos depois, Cee Cee já tinha me apresentando a vinte outras pessoas, e quase todas vieram trotando atrás de mim a caminho da aula seguinte, querendo saber como era morar em Nova York.
-Lá é mesmo tão, tão... - quis saber uma garota sem-graçona, toda ansiosa na busca da palavra exata para expri¬mir o que desejava - tão metrópole como dizem?
Essas garotas, talvez nem precise dizer, não eram as tipi¬camente classudas. Não demorou para eu ver que não se davam com a lindinha bronzeada e com a garota cujos de¬dos eu ameaçara quebrar, que eram as arrumadérrimas, com seus suéteres e suas saias cáqui. Nada disso. As garotas que se aproximaram de mim eram dos mais diversos tipos, umas cheias de acne, outras gordas, ou então completamente es¬queléticas. Fiquei horrorizada ao ver que uma delas usava sandálias por cima de meia-calça com reforço nos dedos. E meia calça-bege, ainda por cima! Com sandálias brancas. Em pleno inverno!
Logo vi que meu trabalho ia ser facilitado.
Cee Cee parecia ser a líder daquele grupinho. Editora do jornal do colégio, o Notícias da Missão, ao qual se referia como "mais uma resenha literária do que um jornal de ver¬dade", ela dissera a verdade quando me informou que não precisava de ajuda para ir à luta. Munição era o que não lhe faltava, com direito a um belo arsenal de torpedos ver¬bais e uma ética do trabalho das mais sérias. Praticamente a primeira coisa que ela me perguntou, depois de superar a raiva que lhe provoquei, foi se eu estaria interessada em escrever alguma coisa para o jornal.
- Nada muito complicado - foi dizendo, toda espevitada. - Quem sabe simplesmente um ensaio comparando a cultura adolescente na Costa Leste e na Costa Oeste. Aposto que você está encontrando um monte de diferenças entre nós e os seus amigos lá de Nova York. Então, que diz? Meus leitores teriam o maior interesse, especialmente garotas como Kelly e Debbie. Talvez você pudesse publicar alguma coisa sobre o mico que pode ser aparecer bronzeado na Costa Leste.
E ela caiu no riso, sem parecer propriamente perversa, mas tampouco sem nada de inocente. Mas eu logo veria que Cee Cee era exatamente assim, toda risonha, com um riso que brilhava ainda mais com aqueles aparelhos terrí¬veis, e toda bem-humorada. Aparentemente era tão famosa pelas piadas que soltava quanto por sua gargalhada-quase-relincho, que às vezes parecia sair dela aos borbotões, como se não pudesse controlá-la, numa alegria a toda prova que inevitavelmente atraía os "psiu" das noviças afetadinhas que trabalhavam como bedéis, impedindo-nos de incomo¬dar os turistas que vinham tirar fotos de Junipero Serra sendo bajulado por aquelas pobres índias de bronze.
A Academia da Missão era um colégio pequeno. Havia apenas setenta segundanistas. Adorei que o Dunga e eu tivéssemos horários diferentes, pois assim o único período que tínhamos em comum era o do almoço. O almoço, por sinal, acontecia no pátio da escola, que ficava de um dos lados do estacionamento, um enorme playground grama¬do dando para o mar, com os veteranos comendo nas mesmas mesas que os calouros e gaivotas mergulhando na di¬reção de quem fizesse a besteira de lhes atirar uma batata frita. Posso dizer porque fiz a experiência. A irmã Ernestine - a mesma que tinha sido chamada de baranga pelo Adam, que afinal foi parar na minha classe de estudos sociais - veio na minha direção e me disse para nunca repetir aqui¬lo. Como se eu não tivesse entendido perfeitamente o reca¬do no exato momento em que cinqüenta enormes gaivotas grasnantes baixaram do céu num turbilhão e me cercaram, exatamente como faziam os pombos na Praça Washington quando alguém fazia a besteira de atirar no chão um pedaci¬nho de biscoito.
Seja como for, Soneca e Mestre também tinham o mes¬mo horário de almoço que eu. Era o único momento em que eu via algum dos Ackerman no colégio. Era interessante observá-los em seu ambiente. Fiquei feliz de ver que ou havia acertado em minha análise do temperamento de¬les. Mestre vivia cercado de um bando de garotos com cara de nerds, a maioria usando óculos e teclando seus laptops no colo. Dunga vivia com os descolados e ao redor deles estavam sempre flutuando - mais ou menos como as gaivotas tinham flutuado em volta de mim - as garotas bonitinhas e bronzeadas da turma, inclusive aquela ao lado da qual eu evitara sentar. A conversa deles parece que girava em torno do que haviam ganho no Natal, pois era o primeiro dia de volta das férias de inverno, e de quem havia que¬brado mais costelas esquiando em Tahoe.
Soneca talvez fosse o mais interessante. Não que ele tivesse acordado. Isso não, céus. Mas ficou sentado numa das mesas de piquenique com os olhos fechados e o rosto voltado para o sol. Como isto eu posso ver em casa, não foi o que me interessou. Não. O que me interessou foi o que estava acontecendo ao lado do Soneca. E era simplesmente um garoto incrivelmente lindo que só fazia ficar olhando bem em frente com uma expressão de arrasadora tristeza. De vez em quando passavam umas garotas - sempre pas¬sam umas garotas quando há um lindão por perto - e davam alô para ele; ele então afastava o olhar do mar, que era para onde estava olhando, e dizia "Oi", para em seguida voltar a olhar para aquelas ondas hipnóticas.
Fiquei pensando que Soneca e seu amigo bem que po¬diam ser chegados a puxar um fumo. Isto explicaria muita coisa sobre o Soneca.
Mas quando perguntei à Cee Cee se sabia quem era o cara e se tinha algum problema com drogas, ela respondeu:
Ah, é o Bryce Martinson. Não, não tem nada a ver com drogas. Está só triste porque a namorada dele morreu nas férias.
É mesmo? - fiz eu, mastigando o lanche que havia trazido, pois a merenda na Academia da Missão deixa muito a desejar. Dava para entender por que tantos alunos traziam lanche de casa. A merenda tinha sido cachorro-quente. Isso mesmo, cachorro-quente. - Mas como ela morreu?
- Meteu uma bala na cabeça - interferiu Adam, o cara que estava no gabinete do diretor, e que ia passando. Ele estava comendo Cheetos de um saco gigante que acabara de tirar de sua mochila de couro. Uma mochila Louis Vuitton, diga-se de passagem. - Esfacelou a parte traseira do crânio.
Uma das garotas sem-graçonas virou-se, ouvindo isto, e comentou:
- Nossa senhora, Adam, como pode ser tão frio? Adam deu de ombros:
- E daí? Eu não gostava mesmo dela quando estava viva. Não vou dizer agora que gostava dela só porque morreu. No fundo, se alguma coisa mudou, é que posso estar odian¬do ela ainda mais. Estão dizendo que vamos todos ter de percorrer a Via Crucis na quarta-feira por causa dela.
- Exatamente - retrucou Cee Cee, enojada. - Temos de rezar por sua alma porque ela se matou e agora terá de arder no fogo dos infernos por toda a eternidade.
Adam ficou meio pensativo:
- É mesmo? Pensei que os suicidas iam para o purgatório...
- Nada disso, seu burro. Por que você acha que o mon¬senhor Constantine não autoriza o serviço fúnebre da Kelly? Suicídio é pecado mortal. Monsenhor Constantine não pode deixar que uma suicida seja homenageada na sua igreja. Não permitirá nem mesmo que os pais dela a enterrem em solo consagrado - e aqui Cee Cee já estava rolando os olhos de espanto. - Eu nunca gostei da Heather, mas odeio monsenhor Constantine e suas regras cretinas ainda mais. Estou pensando em escrever um artigo sobre isto, e dar o título de O Pai, o Filho e o Hipócrita Santo.
As outras garotas soltaram um risinho nervoso. Esperei até elas pararem e perguntei:
Por que será que ela se matou? Adam fez um ar de tédio.
Por causa do Bryce, claro. Ele acabou com ela.
Uma garota negra bonitinha chamada Bernadette, que com seu metro e 80 era mais alta que todo mundo ali, incli¬nou-se para a frente e sussurrou:
- Ouvi dizer que ele terminou com ela no shopping. Dá para acreditar?
Uma outra menina disse:
Isso mesmo, na véspera de Natal. Eles estavam fazen¬ do as compras de Natal juntos e ela mostrou um anel de diamante na vitrine da Bergdorf, e disse: "Quero este." E aí aposto que ele entrou em pânico - sabe como é, era um anel de noivado - e rompeu com ela ali mesmo, na hora.
E por causa disso ela foi para casa e deu um tiro na cabeça? - insisti, achando aquela história toda muito esquisita. Quando eu perguntei à Cee Cee onde todo mundo almoçaria se por acaso chovesse, que Deus nos livre, ela explicou que todo mundo tinha de ficar sentado na sala de aula, para comer lá mesmo, e que as freiras traziam jogos de tabuleiro para todo mundo se distrair. Eu fiquei me perguntando se aquela história, como a história dos almoços em dia de chuva, era uma invenção. Cee Cee era o tipo da guria que sen¬tia um frisson em contar uma mentirinha para a aluna nova - não por maldade, só para se divertir um pouco.
- Não imediatamente - explicou Cee Cee. - Ela ainda tentou convencê-lo a voltar com ela durante um tempo. Passou a telefonar para ele de dez em dez minutos, até sua mãe lhe dizer para não telefonar mais. Aí ela começou a mandar-lhe cartas, dizendo o que ia fazer - já sabe, que ia se matar se ele não voltasse com ela. Como ele não respondia, ela pegou o 44 do pai, foi de carro até a casa do Bryce e tocou a campainha.
Adam passou então a contar o resto da história, o que significava provavelmente que ia haver sangue.
Isso mesmo - levantou-se ele para fazer a cena, usando um Cheeto como revólver. - Os Martinson estavam dando uma festa de réveillon, de modo que estava todo mundo em casa. Abriram a porta e lá estava aquela guria ensandecida, apontando um revólver para a cabeça. Ela disse que se não a deixassem falar com o Bryce, ia puxar o gatilho. Mas o Bryce nem estava lá, tinha sido mandado para Antígua...
... para ver se um pouco de sol e umas ondas ajuda¬vam a melhorar seus nervos em frangalhos - atalhou Cee Cee -, pois como vocês sabem, ele está bem no meio da época dos exames e a última coisa que queria era mais pressão ainda.
Adam fulminou-a com os olhos e prosseguiu, seguran¬do o Cheeto contra o crânio:
- Isso aí, mas foi um erro fatal da parte dos Martinson. Assim que ela ficou sabendo que o Bryce tinha saído do país, puxou o gatilho e arrebentou com a traseira do crânio, e as luzes de Natal que os Martinson tinham espalhado por ali ficaram cheias de pedacinhos de cérebro e outros bi¬chos...
Todo mundo, menos eu, deu um gemido ao ouvir esses detalhes. Eu estava pensando em outras coisas.
- A cadeira vazia na sala de aula... Aquela do lado da... como se chama mesmo? Da Kelly. Era onde se sentava a garota que morreu, certo?
Bernadette fez que sim com a cabeça.
- Exatamente. Por isso é que achamos tão esquisito quan¬do você simplesmente passou por ela. Era como se você soubesse que era onde a Heather se sentava. Todo mundo ficou pensando que você talvez fosse médium ou coisa assim...
Eu nem me dei ao trabalho de dizer que o motivo pelo qual não tinha sentado na cadeira da Heather não tinha nada a ver com ser médium ou deixar de ser. Na verdade, simplesmente não disse nada. Eu estava pensando: "Valeu, mãe, ter-me dito porque de repente apareceu uma vaga para mim, quando pouco antes o colégio estava tão superlotado que não cabia nem mais um aluno."
Fiquei olhando para o Bryce. Ele ainda estava bronzea¬do da viagem a Antígua. Estava sentado à mesa de piquenique com os pés sobre o banco, os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando fixamente para o Pacífico. Uma leve brisa agitou por um momento seus cabelos de um louro cor de areia.
Ele não tem a menor idéia, pensei. Não tem mesmo a menor idéia. Se está pensando que sua vida agora ficou hor¬rível, espere só para ver.
Espere só.

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