quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 16

Nem pensar - disse padre Dominic. - Padre - tentei argumentar. - Não vejo outra saída. Nós sabemos perfeitamente que ela não irá por vontade própria. E ela é perigosa demais para ficar por aí perambulando indefinidamente. Acho que vamos precisar dar um empurrão.
Padre Dominic tirou os olhos de mim e ficou com o olhar perdido num ponto do teto.
- Não é para isto que estamos aqui, pessoas como você e eu, Suzannah - disse ele com a voz mais triste que eu ja¬mais ouvira. - Nós somos as sentinelas dos portões do Além. Somos nós que ajudamos a guiar as almas perdidas para seu destino final. E não houve um só espírito ajudado por mim que não tivesse passado pelo portão por vontade própria...
Isso aí. E se a gente fechar os olhos na noite de Natal, Papai Noel vai aparecer. Devia ser muito bom, pensei, ver o mundo pelos olhos do padre Dom. Ficava parecendo um lugar muito legal. Muito melhor que o mundo no qual eu vivia há dezesseis anos.
Certo - disse eu. - Bom, não vejo outro jeito.
Um exorcismo - murmurou padre Dominic, pronunciando a palavra como se fosse algo nojento.
Ouça - prossegui, começando a me arrepender de ter dito alguma coisa. - Acredite, não é um método que eu recomendo sempre. Mas não acho que tenhamos muita es¬colha. A Heather já não é um perigo apenas para o Bryce. - Eu não queria contar-lhe o que ela havia dito sobre o David. Já podia até vê-lo saltando da cama e berrando por um par de muletas. Mas como eu já tinha deixado escapar o que estava planejando, precisava mostrar a ele por que considerava necessária uma medida tão extrema. - Ela é um perigo para o colégio todo e precisa ser contida - dis¬se então.
Ele assentiu com a cabeça.
- Sim, sim, você tem razão. Mas Suzannah, você tem de prometer que vai esperar que eu tenha alta. Conversei com a médica, e ela disse que pode me dar alta já na sexta-feira. Com isto, teremos tempo suficiente para pesquisar a metodologia apropriada... - ele deu uma olhada para a mesinha- de-cabeceira. - Quer me dar aquela Bíblia ali, Suzannah? Quem sabe não o encontramos aqui...
Eu lhe entreguei a Bíblia.
- Tenho plena convicção de que domino perfeitamente a coisa - disse eu. 
Ele levantou os olhos e me fixou com aquele seu olharzinho triste de criança. Pena que já fosse tão velho, e ain¬da por cima padre. Fiquei me perguntando quantos corações ele não teria partido antes de encontrar sua vocação.
- E como é que você pode dominar perfeitamente uma coisa complicada como um exorcismo católico romano? - quis saber ele.
Eu me mexi, meio sem jeito.
Bem, eu não estava pretendendo usar exatamente a versão católica romana.
Existe alguma outra?
Mas claro! A maioria das religiões tem sua versão. Pessoalmente, prefiro a umbanda. É bem objetiva. Nada de sortilégios demorados ou coisas do gênero.
Ele parecia estar sofrendo:
Macumba?
Isso mesmo. É o vodu brasileiro. Eu descobri na Internet. Só precisamos de um pouco de sangue de galinha e...
Maria Santíssima, mãe de Deus! - interrompeu padre Dominic, levando algum tempo para se recuperar e prosse¬guir: - Fora de questão. Heather Chambers era uma católica batizada e, apesar da causa de sua morte, merece um exor¬cismo católico, se não um enterro católico. No momento ela não tem grandes chances de ir para o Céu, devo reconhecer, mas posso garantir que pretendo fazer tudo para que tenha a oportunidade de cumprimentar São Pedro no portão.
Padre Dom - eu disse. - Realmente não acho que faça a menor diferença se ela tiver um exorcismo católico, brasileiro, pigmeu ou o que seja. A dura realidade é que se hou¬ver um Céu, não existe a menor possibilidade de que Heather Chambers vá para lá.
Padre Dominic fez um muxoxo de desaprovação.
Suzannah, como pode dizer uma coisa dessas? Todo mundo tem alguma coisa de bom. Acho que até você é ca¬paz de ver isso.
Até eu? Como assim, até eu?
Estou querendo dizer que até Suzannah Simon, que pode ser muito dura com os outros, deve ser capaz de entender que até no ser humano mais cruel existe a flor do bem. Talvez um brotinho muito pequeno mesmo, carente de água e luz do sol, mas ainda assim uma flor.
Fiquei me perguntando que analgésicos estariam dando ao padre Dom. E disse:
- Tudo bem então, padre. Só sei que, aonde quer que a Heather vá, não será para o Céu. Se é que existe um Céu...
Ele sorriu para mim com tristeza.
- Eu gostaria apenas, Suzannah, que você tivesse em matéria de fé no Senhor metade do que tem de coragem - disse. - Ouça-me um instante. Você não pode, simplesmente não pode tentar deter a Heather sozinha. Ficou perfeitamente claro que ela quase a matou na noite passada. Eu não conseguia acreditar quando cheguei e vi os estragos que ela ti¬nha provocado. Você teve muita sorte de sair com vida. E pelo que aconteceu esta manhã também está claro, como você mesma diz, que ela está apenas acumulando forças. 
Seria uma burrice, uma burrice criminosa, se você tentasse de novo fazer alguma coisa sozinha.
Eu sabia que ele tinha razão. Pior ainda, se eu levasse adiante aquela história de exorcismo, não poderia con¬tar com a ajuda do Jesse, pois o exorcismo poderia muito bem mandá-lo de volta para o criador, juntinho com a Heather.
- Além disso - prosseguiu padre Dominic -, não há qual¬quer motivo para se apressar, não é mesmo? Agora que ela já conseguiu mandar o Bryce para o hospital, não fará ne¬nhuma outra tolice, pelo menos até ele voltar para o colégio. Parece que ele é a única pessoa contra a qual ela alimen¬ta instintos assassinos...
Eu não disse nada. E como poderia? O pobre infeliz pare¬cia tão patético, deitado naquela cama... Eu não queria dar-lhe mais motivos de preocupação. Mas a verdade é que eu não poderia esperar que o padre Dom saísse do hospital. A Heather não estava brincando. A cada dia que passava, ela só ia ficando mais forte e mais perversa e mais cheia de ódio. Eu tinha de me livrar dela, e precisava ser logo.
De modo que cometi algo que deve ser um pecado mor¬tal. Menti para um padre.
Ainda bem que eu não sou católica.
- Não se preocupe, padre Dom - disse. - Vou esperar que o senhor se sinta melhor.
Mas o padre Dominic não era nenhum bobo.
Prometa-me, Suzannah - insistiu.
Prometo. 
Claro que eu tinha cruzado os dedos. Eu esperava que, se existisse um deus, isto servisse para neutralizar o peca¬do de mentir para um dos seus mais devotados servidores.
- Deixe-me ver - murmurava padre Dominic. - Vamos precisar de água benta, naturalmente. Mas isto não é pro¬blema. E, naturalmente, de um crucifixo.
Enquanto ele matutava sobre os itens necessários, Adam e Cee Cee entraram no quarto.
- E aí, padre Dom? - foi dizendo o Adam. - O senhor está péssimo!
Cee Cee cutucou-o com o cotovelo.
- Adam - sussurrou ela, voltando-se com vivacidade para o padre. - Não dê bola para ele, padre Dom. Eu acho que o senhor parece ótimo. Parece mesmo, para quem quebrou um bocado de ossos...
Crianças! - fez padre Dominic, realmente contente por vê-los. - Mas que bom! Mas por que estão desperdiçando uma tarde bonita como esta para visitar um velho num hospital? Vocês deviam estar na praia curtindo o sol.
Na verdade estamos fazendo uma matéria sobre o acidente para as Notícias da Missão - informou Cee Cee. - Acabamos de entrevistar o monsenhor. É realmente uma pena essa história da visita do arcebispo e tudo mais, e a estátua do padre Serra sem cabeça...
Isso aí - fez o Adam. - Um horror mesmo.
Não faz mal - disse padre Dominic. - É o empenho e a preocupação de vocês que vão realmente impressionar o arcebispo. 
- Amém - disse Adam, solene.
Antes que uma de nós duas tivesse tempo de ralhar com o Adam por causa do sarcasmo, uma enfermeira entrou e comunicou a Cee Cee e a mim que tínhamos de sair porque ela ia dar banho de esponja no padre Dom.
Banho de esponja! - espantou-se o Adam enquanto caminhávamos para o carro. - No padre Dom dão banho de esponja, mas e eu, que realmente saberia apreciar uma coisa dessas, que é que me dão?...
Uma oportunidade de servir de motorista para as duas garotas mais bonitas de Carmel - adiantou-se Cee Cee.
Tá bom - concordou Adam, voltando-se para mim: - Não que você não seja a garota mais bonita de Carmel, Suze... Eu só estava querendo dizer... Bem, você sabe...
Sei - disse eu, sorrindo.
Puxa vida, banho de esponja! E você viu só aquela en¬fermeira? - continuou Adam, empurrando o encosto do banco do carona para a Cee Cee se esgueirar para o assento de trás. - Alguma coisa deve ter nessa história de ser padre. Talvez eu devesse me candidatar.
Lá de trás, a Cee Cee respondeu:
- Ninguém se candidata. É uma vocação. E você não ia gostar nada, Adam, pode crer. Padres não podem jogar Nintendo.
Adam engoliu esta.
- Talvez eu pudesse fundar uma nova ordem - disse ele, concentrado. - Como os franciscanos, só que seríamos a Ordem dos Felizardos. Nosso lema seria "Nota dez para todos, pizza para todo mundo". 
Cee Cee interrompeu:
- Cuidado com a gaivota!
Nós estávamos na Rodovia Litorânea de Carmel. Pouco depois da mureta de pedra a nossa direita estava o Oceano Pacífico, brilhando como uma jóia à luz da gigantesca bola de fogo amarela do sol. Provavelmente eu o devia estar con¬templando muito demoradamente (eu ainda não tinha me acostumado com sua presença constante), pois o Adam foi tratando de se enfiar com o carro numa vaga que acabava de ser deixada livre por um BMW. Eu fiquei olhando para ele interrogativamente, enquanto ele perguntava:
- Você ainda não conseguiu parar para ficar olhando o pôr-do-sol?
Saí do carro numa fração de segundo.
Pouco depois, estava me perguntando como é que nun¬ca tinha pensado antes em me mudar para a Califórnia. Sentada numa manta que o Adam tirou da mala do carro, observando os atletas correndo e os surfistas de fim de tarde, os cães correndo atrás de frisbees e os turistas com suas câmeras, estava me sentindo tão bem como não me sentia há muito tempo... Talvez fosse porque eu ainda estava num regime de dormir apenas quatro horas por noite. Talvez, simplesmente o cheiro da água do mar me estivesse deixan¬do meio embriagada. Mas o fato é que estava me sentindo realmente em paz, como se fosse pela primeira vez na vida.
O que não deixava de ser estranho, levando-se em con¬ta que dentro de poucas horas eu estaria em luta contra as forças do Mal. 
Até que essa hora chegasse, no entanto, decidi que ia curtir a vida. Voltei o rosto para o sol que se punha, sentin¬do os seus raios quentes na bochecha, e fiquei ouvindo o barulho das ondas, os gritos das gaivotas e a conversa de Cee Cee com o Adam.
- Aí eu disse para ela, Claire, você já tem quase 40 anos. Se você e o Paul querem ter outro filho, é melhor andarem depressa. Vocês estão correndo contra o tempo - disse o Adam, bebendo um refrigerante que havia comprado numa lanchonete perto do lugar onde estacionamos. - Ela ficou dizendo que meu pai e ela não queriam que eu me sentisse ameaçado por um outro filho e eu respondi que não me sentia ameaçado por bebês. Sabe o que realmente me faz sentir ameaçado? Esses orangotangos que ficam tomando esteróides, do tipo Brad Ackerman, isto sim.
Cee Cee lançou um olhar de advertência para Adam e depois olhou para mim:
- E como você está se dando com seus meios-irmãos, Suze?
Eu desviei meu olhar do sol.
- Acho que bem - respondi. - Mas é verdade que o Dun... quer dizer, o Brad, toma esteróides?
O Adam respondeu:
- Eu não devia ter dito isto. Sinto muito. Tenho certeza de que ele não toma. Mas aqueles caras todos da equipe de luta-livre, eles realmente são de dar medo. E têm tanta rai¬va de gays... que dá para desconfiar de suas preferências sexuais. Eles todos pensam que eu sou gay, mas não sou exatamente eu que fico metido num colante agarrando as coxas de outros caras.
Eu senti vontade de pedir desculpas em nome do meu meio-irmão e foi o que fiz, acrescentando:
- Não estou tão certa assim de que ele seja gay. Outro dia ele ficou todo feliz quando a Kelly Prescott ligou para nos convidar para a festa em sua piscina no sábado.
Adam assobiou e de repente Cee Cee perguntou:
- Você não prefere algo melhor que esta manta? Quem sabe uma toalha de praia de caxemira?... É o tipo de toalha que a Kelly e o pessoal dela usam na praia.
Eu fiquei piscando, percebendo que acabava de cometer uma gafe.
Ué, eu não sabia... Pensei que a Kelly também tinha convidado vocês. Achei que ela ia convidar todos os segundanistas.
Com certeza que não - disse Cee Cee, fungando. - Só os segundanistas com status, o que não é caso do Adam nem o meu.
Mas você é a editora do jornal do colégio - ponderei.
Certo - respondeu o Adam. - Traduza isto como a mesma coisa que bosta, e vai entender por que nunca fomos convidados para uma festa na piscina da princesa Kelly.
Fiquei calada por um minuto, ouvindo as ondas. Mas acabei dizendo:
Não que eu estivesse pensando em ir...
Não mesmo? - e os olhos de Cee Cee se esbugalharam por trás dos óculos. 
- Não. No início, porque eu tinha um encontro com o Bryce, que acabou sendo cancelado. Mas agora porque... bom, se vocês não forem, com quem eu vou conversar?
Cee Cee deitou-se na manta.
- Suze - disse ela. - Você alguma vez pensou em ser vice-presidente da turma?Eu achei graça.
Espera aí, eu sou a mais nova da turma, lembra?
Isso aí - fez o Adam. - Mas você leva jeito. Vi que você tem alguma coisa de líder na maneira como acabou com a raça da Debbie Mancuso ontem. Os homens sempre admiram as garotas que parecem capazes de dar um murro na cara de outra garota a qualquer momento. É mais forte que nós. Talvez seja genético - concluiu ele, dando de ombros.
Certamente vou levar isto em consideração - disse eu, rindo. - Cheguei a ouvir um boato de que a Kelly pretendia gastar todo o orçamento da turma numa festa...
Exatamente - confirmou Cee Cee. - Ela faz isto todo ano. É aquela baboseira da dança da primavera. Um saco. Pelo menos para quem não está de namorado, não serve para nada. Não dá para fazer mais nada, só dançar.
Espera aí - atalhou Adam. - Lembra aquela vez em que a gente levou balões de água?
Bom, naquele ano foi divertido - reconheceu Cee Cee.
Eu estava pensando - interferi - que talvez fosse me¬lhor uma coisa assim. Sabe como é. Um piquenique na praia. Talvez até dois... 
- Isso mesmo! - exclamou o Adam. - Com fogueira! O meu lado piromaníaco sempre quis fazer uma fogueira na praia.
Cee Cee concordou:
- Exatamente! É exatamente o que a gente devia fazer. Suze, você tem de concorrer a vice-presidente!
Santa virgem, mas o que foi que eu fiz? Eu não queria ser vice-presidente da turma de segundo ano! Não queria me envolver com essas coisas! Eu não tinha o menor espí¬rito de comunidade, não tinha opinião sobre nada! Que diabos estava eu fazendo? Será que tinha perdido a cabeça?
- Olha lá! - disse Adam de repente, apontando para o sol. - Lá vai ele.
Enquanto ia desaparecendo no horizonte, a enorme bola alaranjada parecia estar mergulhando no mar. Não tinha nada respingando nem nenhuma fumaça, mas eu seria ca¬paz de jurar que tinha ouvido o sol atingindo a superfície da água.
Lá vai o sol - cantou Cee Cee suavemente.
Lá lá lá lá lá - continuou o Adam.
Lá vai o sol - prossegui.
Tudo bem, tenho de reconhecer que era meio infantil, ficar ali sentado cantando, enquanto o sol se punha. Mas também era divertido. Lá em Nova York, a gente costuma¬va ficar sentado no parque vendo os policiais à paisana prenderem traficantes de drogas. Mas não dava para compa¬rar com o prazer de cantar despreocupado na praia enquanto o sol se põe. 
Alguma coisa estranha estava acontecendo. E eu não sabia direito o que era.
- Eu já sei. Tá legal - cantamos os três em uníssono.
Estranhamente, naquele exato momento, eu realmente acreditei que seria assim. Que estaria tudo bem.
E foi aí que me dei conta do que estava acontecendo.
Eu estava me integrando. Eu, Suzannah Simon, a media¬dora. Pela primeira vez na vida eu estava me integrando com alguma coisa.
E fiquei feliz. Realmente feliz. Naquele momento, eu real¬mente acreditava que tudo estaria bem.
Mal sabia eu!...

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