quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 11

Nós conseguimos voltar para a sala do professor Walden. Não sei como, mas conseguimos, com a cabeça da estátua zunindo atrás de nós o tem¬po todo, a uma tal velocidade que chegava a fazer um api¬to medonho, como se o padre Serra estivesse gritando. A cabeça foi dar com a força de uma bala de canhão contra a pesada porta de madeira, uma fração de segundo depois de nós entrarmos e batermos a porta.
- Díos! - exclamou Jesse, enquanto jogávamos o peso de nossas costas contra a porta, ofegantes, como se pudéssemos impedir a passagem simplesmente com nosso peso... logo a Heather, que, se quisesse, podia atravessar paredes. - Você disse que era perfeitamente capaz de cuidar de si mesma. Disse também que precisava primeiro livrar-se dela. Perfeito...
Eu estava tentando recuperar o fôlego, pensar no que fa¬zer. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Nunca. 
Cala a boca - disse.
Bafo de cadáver... - Jesse voltou-se para me olhar de frente. Seu peito arfava, subindo e descendo. - Você se dá conta de que me chamou de bafo de cadáver? Magoou hermosa. Magoou mesmo.
Eu já disse... - Alguma coisa pesada estava esmurran¬do a porta. Eu a sentia bem na altura da minha espinha. Não era preciso ser um gênio para adivinhar que era a cabeça do fundador de uma certa Missão. -... para não me chamar de hermosa!
Pois eu também ficaria agradecido se você não fizesse comentários desabonadores a meu respeito.
Olha aqui - disse eu. - Esta porta não vai agüentar para sempre.
Não - concordou ele, no exato momento em que a cabeça de metal começou a aparecer por uma fenda que se ia abrindo na madeira. - Posso dar uma sugestão?
Eu estava horrorizada, com os olhos arregalados gruda¬dos naquela cabeça de metal, que se havia voltado, metade para dentro e metade para fora da porta, para ficar me olhan¬do com frios olhos de bronze. Parece maluquice, mas sou capaz de jurar que ela estava sorrindo para mim.
Claro - eu disse,
Corra!
Eu não hesitei nem um segundo em aceitar o conselho. Corri para o peitoril da janela, e, sem dar a menor bola para os cacos de vidro quebrado, agarrei-me a ela. Levei apenas alguns segundos para abrir a janela, mas foi o suficiente para que Jesse, ainda lutando contra o que já agora começa¬va a soar como um furacão, pedisse:
- Poderia andar mais rápido, POR FAVOR?
Eu saltei em direção ao estacionamento. Lá fora, do outro lado das espessas paredes de tijolo cru da Missão, era engraçado que nem dava para dizer que uma violen¬ta manifestação paranormal estava acontecendo do lado de dentro. O estacionamento ainda estava vazio e tran¬qüilo, acariciado pela sonoridade ritmada das ondas do mar. É impressionante como podem acontecer as coisas mais absurdas bem debaixo do nariz das pessoas e elas nem percebem...
-Jesse! - sussurrei através da janela. - Vamos, venha!
Eu não tinha a menor idéia se a Heather seria capaz de querer descarregar sua raiva em cima de algum passante, ou se o Jesse, caso ela o fizesse, tinha algum truque guarda¬do para reagir, como aquele que ela tinha usado com a cabeça da estátua. Eu só sabia que quanto mais cedo a gente saísse do alcance dela, melhor.
Bom, quero deixar logo claro que eu não sou nenhuma covarde. Realmente não sou. Mas também não sou nenhu¬ma maluca. Considero que quando a gente se dá conta de que está enfrentando uma força muito maior que a nossa, não tem nada de mais sair correndo.
Mas deixar os outros para trás não é certo.
-Jesse!!! - berrei através da janela.
- Acho que já mandei você correr - disse atrás de mim uma voz muito irritada. 
Eu engoli em seco e dei meia-volta. Lá estava o Jesse, de pé no asfalto do estacionamento, com a Lua por trás dele, o que deixava seu rosto na sombra.
- Oh meu Deus! - Meu coração batia tão depressa que eu pensei que ele fosse explodir. Eu nunca tinha sentido tanto medo em toda a minha vida. Nunca.
Talvez por isto eu tenha decidido então esticar os dois braços e agarrar a camisa do Jesse com as duas mãos.
Oh meu Deus - repeti. - Jesse, você está bem?
Claro que estou. - Ele parecia surpreso que eu me desse ao trabalho de perguntar. E acho que era mesmo uma per¬gunta cretina. Afinal, que mal a Heather podia fazer ao Jesse? Não dá para imaginar que ela fosse matá-lo... - E você, está bem?
Eu? Estou ótima. - Voltei-me então para as janelas da sala do professor Walden. - Você acha que conseguimos... neutralizá-la?
Por enquanto - disse Jesse.
E como você sabe? - Eu estava chocada de ver que estava tremendo, tremendo de verdade, da cabeça aos pés. - Como sabe que ela não vai atravessar aquelas paredes feito um tufão e começar a arrancar as árvores por aí e jogá-las contra nós?
Jesse balançou a cabeça, e eu vi que ele estava sorrindo. Até que para um sujeito que morreu antes de inventarem a ortodontia ele tinha uns dentes bem bonitos. Quase tão bonitos quanto os do Bryce.
- Pode estar certa que não. 
Mas como é que você sabe?
Porque não. Ela nem sabe que é capaz disto. Ela é muito nova no ramo, Suzannah. Ainda não sabe do que é capaz.
Se o objetivo era me fazer sentir melhor, não funcio¬nou. O fato de ele reconhecer que ela era capaz de arrancar árvores e começar a atirá-las à distância - sim, ela tinha este poder - e só não o fazia por falta de experiência bas¬tou, entretanto, para eu parar de tremer feito vara verde e largar a camisa dele. Não que eu não achasse que a Heather podia ter-me seguido se quisesse. Ela era perfei¬tamente capaz disso, exatamente como o Jesse me havia seguido até a Missão. Mas a diferença é que o Jesse sabia que era capaz. Ele já era fantasma há muito mais tempo que a Heather. Ela estava apenas começando a explorar suas novas possibilidades.
Era isto que dava mais medo. Ela era tão nova naquilo tudo... e já tão poderosa.
Eu comecei a caminhar pelo estacionamento feito uma maluca.
Precisamos fazer alguma coisa - disse. - Temos de avi¬sar o padre Dominic... e também o Bryce. Meu Deus, temos de avisar ao Bryce que não venha ao colégio amanhã. Ela vai matá-lo. Vai matá-lo no exato momento em que ele puser o pé no campus...
Suzannah - disse Jesse,
Acho que podemos telefonar para ele. É uma hora da manhã, mas podemos telefonar e dizer a ele... nem sei o que a gente pode dizer para ele. Talvez possamos dizer que houve uma ameaça de morte contra ele, ou alguma coisa assim. Talvez funcione. Ou então podemos mandar uma ameaça de morte. Isso mesmo! É isso aí! Podemos telefonar para a casa dele, aí eu disfarço a minha voz e digo algo do tipo "Não venha ao colégio amanhã ou poderá morrer". Talvez ele entenda. Talvez ele...
Suzannah - voltou a dizer o Jesse.
Ou então o padre Dom se encarrega! A gente faz o padre Dom telefonar para o Bryce e dizer para ele não vir ao colégio, que houve algum acidente ou coisa assim...
Suzannah. - Jesse postou-se na minha frente no exa¬to momento em que eu dei meia-volta mais uma vez, para percorrer feito uma siderada o mesmo caminho que estava percorrendo há alguns minutos. Fui obrigada a parar, apanhada de surpresa com sua proximidade, meu nariz prati¬camente batendo no exato ponto em que o colarinho da sua camisa estava aberto. Jesse agarrou os meus dois braços com firmeza e rapidez, para me fazer parar.
Não foi uma boa idéia. Claro, eu sei que um minuto antes eu o tinha agarrado - bem, não exatamente a ele, mas a sua camisa. Mas em circunstâncias normais eu não gosto de ser tocada, e muito menos por fantasmas. E sobretudo não gosto de ser tocada por fantasmas que têm mãos grandes e fortes como as do Jesse.
- Suzannah - disse ele mais uma vez, antes que eu con¬seguisse dizer-lhe que tirasse suas manoplas de cima de mim. - Tudo bem. Não é culpa sua. Você não podia fazer nada. 
Eu meio que esqueci de ficar irritada com as mãos dele.
Eu não podia fazer nada? Você está brincando? Eu de¬via ter dado um pontapé naquela garota para ela ir parar de volta no seu túmulo!
Não - e Jesse sacudia a cabeça. - Ela a teria matado.
Uma ova! Eu podia perfeitamente com ela. Se ela não tivesse feito aquilo com a cabeça daquele cara...
Suzannah.
Eu sei o que estou dizendo, Jesse. Eu podia perfei¬tamente ter dado conta dela se ela não tivesse ficado tão enlouquecida. Aposto que se esperar só um pouqui¬nho até ela se acalmar e voltar lá dentro, consigo con¬vencê-la...
Não. - Ele soltou-me, mas logo tratou de passar um dos braços em volta do meu ombro e começou a me con¬duzir para longe do colégio, em direção à lixeira onde eu havia deixado a bicicleta. - Vamos. Vamos para casa.
Mas e...
- Não - cortou ele, apertando mais os meus ombros. - Jesse, você não está entendendo. Este trabalho é meu.
Eu tenho de...
É uma tarefa do padre Dominic também, não? Deixe que daqui para a frente ele cuida. Não há motivo para você ficar com toda a responsabilidade em cima dos seus ombros.
Pois há sim. Fui eu que estraguei tudo.
Foi você que encostou o revólver na cabeça dela e pu¬xou o gatilho? 
Claro que não. Mas fui eu que a deixei tão furiosa. Não foi o padre Dom. Eu não vou ficar pedindo ao padre Dom que conserte as minhas besteiras. Não teria o menor sentido.
O que não tem sentido nenhum - explicou Jesse, ten¬tando mostrar-se paciente - é alguém esperar que uma garo¬ta como você entre em luta com um demônio dos infernos como...
Ela não é um demônio dos infernos. Só está com raiva. E está com raiva porque o único cara em quem achava que podia confiar revelou-se um...
Suzannah - e Jesse parou de caminhar de repente. Eu só não me desequilibrei e caí de cara no chão porque ele ainda estava segurando os meus ombros.
Por um minuto, apenas um minuto, realmente fiquei pensando... bem, cheguei a pensar que ele ia me beijar. Eu nunca tinha sido beijada antes, mas parecia que estavam dadas todas as condições necessárias para que acontecesse um beijo naquela hora: sabe como é, o braço dele estava ao redor do meu ombro, tinha o luar, nossos corações estavam batendo mais depressa - e, claro, ambos acabávamos de escapar de ser mortos por um fantasma completamente ensandecido.
Naturalmente, eu não sabia como me sentia ante a pos¬sibilidade de que meu primeiro beijo fosse dado por alguém do outro mundo, mas sabe como é, quem está em petição de miséria não pode ficar escolhendo, e posso garantir uma coisa, o Jesse era muito mais gracinha do que qualquer cara vivo que eu tinha conhecido ultimamente. Eu nunca tinha visto um fantasma tão bonitão. Parecia que ele não podia ter mais de vinte anos quando morreu. Fiquei me pergun¬tando de que tinha morrido. Em geral é difícil dizer no caso dos fantasmas, pois seus espíritos tendem a assumir a for¬ma que seus corpos tinham quando deixaram de funcio¬nar. Meu pai, por exemplo, não é diferente hoje, quando aparece para mim, do que era um dia antes de sair para aquela fatal corrida no Prospect Park dez anos atrás.
Eu só podia deduzir que o Jesse tinha morrido nas mãos de alguém, pois ele me parecia com uma saúde de ferro. Era bem provável que tivesse sido atingido por uma daquelas balas que deixaram buracos na varanda lá em baixo. Legal que o Andy os tivesse preservado para a posteridade.
E agora aquele fantasma sensacional parecia que ia me beijar. E quem era eu para impedi-lo?
De modo que inclinei um pouco a cabeça para trás, olhei para ele com as pestanas meio fechadas e meio que deixei minha boca ficar bem relaxada, sabe como é... E foi aí que eu percebi que a atenção dele não estava exatamente foca¬lizada na região dos meus lábios, mas muito abaixo. Nem estava voltada para os meus seios, o que seria uma excelen¬te segunda opção.
- Você está sangrando - disse ele.
Foi o suficiente para estragar completamente aquele mo¬mento. E para deixar meus olhos bem arregalados.
- Não estou não - respondi automaticamente, pois não estava sentindo dor nenhuma. Então olhei para baixo. Pequenas manchas iam surgindo no piso debaixo dos meus pés. Não dava para dizer de que cor eram porque estava muito escuro. À luz da lua, pareciam negras. E logo em seguida constatei horrorizada que havia manchas escuras semelhantes na camisa do Jesse.
Mas era óbvio que as manchas estavam vindo de mim. Comecei a me olhar e a me apalpar toda, e vi que eu tinha conseguido abrir uma das menores veias do meu pulso, mas ainda assim uma veia importante. Enquanto falava com a Heather, eu tinha tirado as luvas e as havia guardado nos bolsos, e em minha pressa de escapar, durante o acesso de raiva dela, esquecera de voltar a vesti-las. Provavelmente eu me havia cortado nos estilhaços de vidro que ainda esta¬vam no parapeito da janela da sala de aula do professor Walden quando a pulei para fugir. O que servia para provar minha teoria de que é sempre na saída que a gente se machuca.
Oh! - disse eu, vendo o sangue escorrer. Sem conseguir dizer nada que tivesse alguma utilidade, acrescentei: - Mas que horror! Sujei a sua camisa toda...
Não é nada. - Jesse meteu a mão num dos bolsos da calça e tirou alguma coisa branca e macia que foi passan¬do ao redor do meu pulso algumas vezes, para em seguida amarrá-la num laço. Enquanto fazia isto, não disse nada, totalmente concentrado no que estava fazendo. Quero regis¬trar aqui que era a primeira vez que eu era atendida em primeiros socorros por um fantasma. Não era exatamente tão interessante quanto teria sido um beijo, mas também não posso dizer que era uma chatice. 
Pronto - disse ele ao concluir. - Está doendo?
Não - respondi, pois não estava mesmo. Eu sabia por experiência própria que só começaria a doer algumas ho¬ras depois. - Obrigada.
Não há de quê - disse ele.
Não... - De repente, a coisa mais ridícula, eu estava com vontade de chorar. Mesmo. E eu nunca choro. - Não, obrigada mesmo. Obrigada por ter vindo me ajudar. Mas não precisava... Quer dizer, estou feliz que você tenha vin¬do. E... bem, obrigada de novo. Só isso.
Ele parecia ter ficado embaraçado. Acho que no fundo era perfeitamente natural que eu ficasse daquele jeito, toda dengosa com ele. Não consegui evitar. O fato é que eu ain¬da não estava conseguindo acreditar. Nenhum fantasma nunca tinha sido tão bonzinho assim comigo. Claro que meu pai tentou... Mas ele não era exatamente o tipo de pessoa de quem você pode esperar esse tipo de coisa. Na verdade eu nunca podia contar realmente com ele, especialmente numa crise.
Mas o Jesse... O Jesse tinha vindo em meu socorro. E eu nem tinha pedido nada a ele. Na verdade, tinha até sido muito desagradável com ele, de maneira geral.
- Esquece - foi tudo que ele conseguiu dizer. E acrescentou: - Vamos para casa.

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