quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 10

Era uma noite fresca e clara. De lua cheia. Ali, da frente da casa, eu a via sobre o mar, parecendo um lampião aceso - não um farol como o sol, mas uma daquelas lâmpadas de poucos watts que a gente põe em abajures re¬torcidos na mesinha-de-cabeceira. O Pacífico, parecendo à distância um espelho tranqüilo, estava negro, exceto numa estreita faixa iluminada pela lua, branca como papel.
À luz da lua eu podia ver a cúpula vermelha da igreja da Missão. Mas só porque eu estava vendo a Missão não que¬ria dizer que a Missão estava perto. Ficava a bem uns três quilômetros de distância. Eu trazia no bolso as chaves do Rambler, que havia subtraído meia hora antes. O metal es¬tava aquecido pelo calor do meu corpo. O Rambler, que de dia era turquesa, ficava parecendo cinza naquela sombra. Bom, sei perfeitamente que não tenho carteira. Mas se o Dunga pode...
Tudo bem. Acabei vacilando. E não é melhor mesmo que eu tenha decidido não dirigir? Pois se não sabia como fa¬zer... Quer dizer, não que eu não saiba dirigir. Claro que sei. É só que eu não tive muita prática, pois passei a vida intei¬ra na capital mundial dos transportes públicos...
Ah, esquece. Dei meia-volta e caminhei em direção à garagem. Tinha de haver uma bicicleta em algum lugar. Três garotos, confere? Tinha de haver pelo menos uma bicicleta.
Acabei encontrando uma. Era uma bicicleta de homem, claro, com aquela barra imbecil, e um assento duro demais. Mas parecia funcionar bem. Pelo menos os pneus não esta¬vam vazios.
Então pensei: muito bem, lá vou eu vestida de preto, an¬dando de bicicleta pelas ruas depois de meia-noite. O que está faltando?
Não esperava mesmo encontrar alguma fita fosforescente, mas fiquei pensando que um capacete não seria mau. Havia um pendurado num cabide ao lado da garagem. Abai¬xei o capuz do meu suéter e pus o capacete. Uau! Charmosa e bem protegida, só mesmo eu.
E lá fui eu, descendo a ladeira. Cascalho não é exata¬mente a melhor coisa para andar de bicicleta, especialmente descendo. E logo ficou claro que o caminho todo era des¬cendente, pois a casa, com vista para a baía, ficava num dos lados daquela espécie de outeiro. Descer certamente era me¬lhor que subir - eu nunca ia conseguir voltar para casa subindo aquela ladeira; entendi perfeitamente que na volta teria de empurrar a bicicleta -, mas dava uma aflição enorme aquela descida. A colina era tão íngreme, o cami¬nho tão tortuoso e a noite estava tão fria que pedalei com o coração na boca quase o tempo todo, com lágrimas escor¬rendo pelas bochechas por causa do vento. E aqueles bura¬cos...! Vou te contar! Como aquela porcaria daquele assen¬to machucava quando eu passava por um buraco!
Mas a colina não era o pior de tudo. Quando cheguei lá embaixo dei com um cruzamento de pistas. Dava muito mais medo que a colina, pois embora já passasse de meia-noite havia carros passando. Um deles buzinou para mim. Mas não foi culpa minha. Eu estava indo tão rápido, por causa da colina e tudo mais, que se tivesse parado provavel¬mente teria voado por cima do guidão. De modo que fui em frente, escapando por pouco de ser atropelada por uma pick-up e, de repente, nem sei como, eu estava entrando no estacionamento do colégio.
A Missão parecia muito diferente à noite. Para começar, durante o dia o estacionamento estava sempre cheio, com todos aqueles carros dos professores, alunos e turistas que visitavam a igreja. Mas agora estava vazio, não havia um único carro, e tão tranqüilo que era possível ouvir, bem longe, o som das ondas na praia de Carmel.
Além disso, por causa do turismo, suponho, eles tinham instalado aqueles focos de luz para iluminar certas partes do prédio, como a cúpula - que estava toda iluminada - e o frontispício da igreja, com seu enorme pórtico de entra¬da. Mas a parte posterior do prédio, onde eu fui dar, estava bem escura. O que, afinal, me convinha perfeitamente. Escondi a bicicleta por trás de uma lixeira, deixei o capacete pendurado no guidão e me aproximei de uma janela. A Missão foi construída há mais ou menos um quaquilhão de anos, quando não existia ar-condicionado ou aquecimen¬to central e, para refrescar no verão e aquecer no inverno, as construções tinham paredes muito grossas. Com isto, to¬das as janelas da Missão tinham uma profundidade de uns trinta centímetros, com mais outros trinta centímetros de recuo na parte interior.
Eu subi num desses parapeitos, olhando ao redor para ver se ninguém estava me vendo. Mas só havia por perto um par de guaxinins fuçando em volta da lixeira, em bus¬ca de algum resto do almoço. Levei ao rosto então as mãos em forma de viseira, para proteger os olhos da luz da lua, e olhei lá para dentro.
Era a sala de aula do professor Walden. Com o luar inci¬dindo lá dentro, pude ver sua letra no quadro-negro e o grande cartaz de Bob Dylan, seu poeta favorito, pendurado na parede.
Não levei mais que um segundo para quebrar o vidro de uma das antiquadas vidraças de ferro, esticar o braço lá para dentro e abrir a janela. O mais difícil em matéria de arrom¬bar uma janela não é propriamente o momento de quebrar o vidro ou mesmo de conseguir abrir a maçaneta. O pior é tirar a mão depois sem se cortar. Eu tinha trazido meu me¬lhor par de luvas caça-fantasma, daquelas bem espessas, de borracha preta com enchimento nas juntas, mas minha manga já tinha ficado presa uma vez, deixando meu braço todo arranhado.
Isso não aconteceu desta vez. Além disso, a janela abria para fora, não para cima, o que me facilitou a entrada. Já aconteceu de eu arrombar lugares que tinham alarmes - o que me obrigou a fazer pequenas e desconfortáveis viagens na parte de trás de caminhonetes do serviço público nova-iorquino - mas a Missão ainda não tinha chegado a este requinte em seu sistema de segurança. Na realidade, o sistema de segurança deles parecia consis¬tir apenas em trancar as portas e janelas, e seja o que Deus quiser.
O que certamente me convinha.
Uma vez dentro da sala do professor Walden, fechei a janela pela qual havia entrado. Não tinha sentido mesmo chamar a atenção de alguém que por acaso estivesse vi¬giando a região (até parece...). Era fácil ir passando entre as carteiras, com todo aquele brilho da Lua. E depois de ter aberto a porta e passado para a galeria, constatei que tam¬bém não ia precisar da lanterna. O pátio estava inundado de luz. Concluí que a Missão deve receber turistas até bem tarde, quando já escureceu, pois no beiral do telhado havia focos de luz amarela apontados em diferentes direções: a palmeira mais alta, aquela que tinha o maior arbusto de hi¬biscos em sua base; a fonte, que continuava ligada, mesmo àquela hora; e, naturalmente, a estátua do padre Serra, com uma luz brilhando em sua cabeça de bronze e outra nas cabeças das indígenas americanas a seus pés.
Ainda bem que o padre Serra era uma boa pessoa e já es¬tava morto. Eu tinha a sensação de que aquela estátua o teria deixado muito embaraçado mesmo.
A galeria estava vazia, assim como o pátio. Não havia ninguém por ali. Eu só ouvia o farfalhar da água da fonte e o canto dos grilos no jardim. Parecia mesmo um lugar bem tranqüilo, o que não deixava de ser surpreendente. Estou querendo dizer é que nenhuma de minhas outras es¬colas me parecia tranqüila. Pelo menos aquela ali estava parecendo bem tranqüila, até que eu ouvi aquela voz áspera atrás de mim:
- O que está fazendo aqui?
Dei meia-volta, e lá estava ela. Simplesmente recostada no seu armário - perdão, no meu armário - e de olho gru¬dado em mim, os braços cruzados no peito. Estava usando um par de calças negras - bem elegantes - e um twinset de caxemira cinza. Trazia no pescoço um colar de pérolas, com uma pérola para cada Natal e cada aniversário de sua vida, certamente um presente de avós muito amorosos. Nos pés, um par de sapatos negros reluzentes. Seu cabelo, que bri¬lhava tanto quanto os sapatos à luz amarelada dos refle¬tores, parecia macio e dourado. Ela realmente era uma garo¬ta bonita.
Pena que tivesse estourado os miolos.
- Heather - disse eu, tirando o capuz. - Oi. Lamento te incomodar... - sempre ajuda pelo menos começar de uma maneira polida - ... mas acho que a gente precisa muito conversar, você e eu.
Heather nem se mexeu. Não, estou exagerando. Ela aper¬tou um pouco os olhos. Tinham uma cor pálida, acho que meio acinzentada, embora fosse difícil saber, apesar dos re¬fletores. Os longos cílios, escurecidos com rímel, tinham uma espécie de moldura de lápis negro de muito bom gosto.
- Conversar? - perguntou ela. - Ah sim, claro. Eu tam¬bém quero muito falar com você. Estou sabendo perfeitamente sobre você, Suzinha.
Eu tremi nas bases. Não consegui me conter:
Suze - corrigi.
Como quiser. Eu sei o que você está fazendo aqui.
Ótimo, muito bem - respondi. - Neste caso não vou precisar explicar. Quer se sentar para a gente poder conversar?
Conversar? Por que eu haveria de querer conversar com você? O que você está pensando que eu sou, mané? Meu Deus, você se acha mesmo muito esperta, não é? Acha que simplesmente pode ir entrando, assim...
Como assim?... - fiz eu, piscando.
Ir tomando o meu lugar - endireitou-se ela, afastan¬do-se do armário e caminhando em direção ao pátio como se estivesse admirando a fonte. - Você, a nova garota - pros¬seguiu, olhando-me com o rabo do olho. - A garota nova que acha que pode simplesmente ir tomando o lugar que me pertencia. Você já se apoderou do meu armário. Já está querendo roubar minha melhor amiga. Eu sei que a Kelly te telefonou e te convidou para a porcaria da festa dela. E agora está achando que pode roubar o meu namorado.
Eu botei as mãos nas cadeiras:
- Ele não é mais seu namorado, lembra, Heather? Ele acabou com você. E é por isto que você está morta. Você estourou os miolos na frente da mãe dele.
Heather arregalou os olhos.
- Cala a boca - disse.
- Você estourou os miolos na frente da mãe dele porque era burra demais para entender que nenhum garoto, nem mesmo o Bryce Martinson, merece que a gente morra por ele. - Eu passei por ela, caminhando em direção a uma das galerias de cascalho que cortavam os jardins. Eu não queria reconhecer, nem para mim mesma, mas estava fi¬cando meio nervosa de ficar ali naquela galeria coberta depois do que acontecera ao Bryce. - Você deve ter fica¬do com muita raiva quando se deu conta do que havia feito. Você se matou. E por uma coisa tão boba. Por causa de um cara.
- Cala a boca! - Dessa vez ela não estava só falando, estava já gritando, tão alto que precisou cerrar os punhos, fechar os olhos e encolher os ombros. Gritou tão alto que meus ouvidos ficaram ressoando um bom tempo. Mas não veio ninguém correndo da reitoria, onde eu vira algumas luzes acesas. Os pombos que eu ouvira arrulhando no beiral da galeria não emitiam um único som desde que a Heather aparecera, e os grilos haviam tratado de adiar o resto de sua serenata.
As pessoas não ouvem fantasmas - bem, não pelo menos a maioria das pessoas -, mas o mesmo não se pode dizer dos animais e mesmo dos insetos. Eles são hipersensíveis a qualquer presença paranormal. Por causa do Jesse, o Max, o cachorro dos Ackerman, nem chega perto do meu quarto.
Não precisa gritar assim - disse eu. - Ninguém mais pode te ouvir além de mim.
Grito quanto quiser - berrou ela, e começou a gritar mesmo.
Bocejando, fui sentar-me num dos bancos de madeira junto à estátua do padre Serra. Percebi então que havia uma placa no pedestal. Graças aos refletores e à luz da lua, eu podia perfeitamente ler a inscrição.
Ao venerável Padre Junipero Serra, 1713-1734 - dizia a pla¬ca. - Seu comportamento exemplar e sua abnegação foram um exemplo para todos que o conheceram e receberam seus ensina¬mentos.
Hmm... Eu ia ter de olhar abnegação no dicionário quan¬do voltasse para casa. Fiquei me perguntando se era a mes¬ma coisa que autoflagelação, algo pelo que Serra também era conhecido.
Você está me ouvindo? - gritava Heather. Eu olhei para ela.
Sabe o que significa abnegação? - perguntei.
Ela parou de gritar e ficou olhando para mim. Depois deu uns passos adiante, com a expressão lívida de raiva.
- Escuta aqui, sua vaca - foi dizendo, parando de caminhar quando estava já quase grudada em mim. - Quero que você simplesmente desapareça, está entendendo? Quero que desapareça desse colégio. Este armário é meu! A Kelly é a minha melhor amiga. E o Bryce é o meu namorado! Vê se trata de desaparecer, de voltar para o lugar de onde veio. Estava tudo muito bem aqui antes de você chegar... Eu tive de interromper.
- Sinto muito, Heather, mas as coisas não estavam nada bem antes de eu chegar aqui. E sabe por que eu sei disso? Porque você está morta. Entendeu? Você está morta. Os mor¬tos não têm armários, nem amigas, nem namorados. E sabe por quê? Porque estão mortos.
Parecia que a Heather ia começar a berrar de novo, mas eu me adiantei, dizendo com toda suavidade e clareza:
Eu sei que você cometeu um erro. Você cometeu um erro terrível, horrível mesmo...
Não fui eu que cometi o erro - atalhou ela, cortante. - Foi o Bryce que cometeu o erro. Foi ele que rompeu comigo.
Eu respondi:
Tudo bem, não era desse erro que eu estava falando. Estava me referindo ao fato de você dar um tiro na cabeça porque um boboca de um garoto acabou com você...
Se acha que ele é tão imbecil assim - disse ela, com uma expressão de zombaria - por que vai sair com ele no sábado? Isso mesmo. Eu ouvi ele te convidando. Aquele desgraçado. Ele provavelmente não foi fiel nem durante um dia enquanto a gente estava saindo.
Sensacional - disse eu. - Mais um motivo para você se matar por causa dele...
Eu vi que havia lágrimas se acumulando por baixo das pestanas dela.
Eu o amava - suspirou ela, - Se não pudesse tê-lo para mim, eu não queria viver.
E agora que você está morta fica achando que ele devia ir ao seu encontro, não é mesmo? - perguntei, já cansada.
Não gosto deste lugar - disse ela mansamente. - Nin¬guém me vê. Só você e o padre Dominic. Eu me sinto tão sozinha...
OK. É compreensível. Mas, Heather, mesmo que você consiga matá-lo, ele provavelmente não vai gostar muito de você por ter feito isto.
Eu sei como fazer para que ele goste de mim - disse ela, confiante. - Afinal, seremos só eu e ele. Ele vai ter de gostar de mim.
Eu balancei a cabeça:
Não, Heather, não funciona assim, Ela olhou bem fixo para mim:
Que quer dizer?
Se você matar o Bryce, não há a menor garantia de que ele acabe ficando com você, O que acontece com as pes¬soas depois que morrem... bem, eu não tenho muita certeza, mas acho que é diferente para cada pessoa. Se você matar o Bryce, ele vai mesmo para onde tem de ir. Céu, inferno, a próxima vida - não sei ao certo. Mas sei que ele não vai se juntar a você. Não funciona assim,
Mas... - e ela parecia furiosa. - Não é justo!
Muita coisa não é justa, Heather. Não é justo, por exem¬plo, que você tenha de sofrer por toda a eternidade por causa de um erro que cometeu no calor da hora. Tenho certeza de que se você soubesse como era estar morta, não teria se matado. Mas não tem de ser assim, Heather.
Ela ficou olhando para mim. As lágrimas pareciam con¬geladas, como pedacinhos de gelo.
Não tem mesmo?... - fez ela.
Não. Não tem.
Você quer dizer... está querendo dizer que eu posso voltar?
Eu fiz que sim com a cabeça.
Pode sim. Você pode começar de novo. Ela fungou.
Como? Eu respondi:
Só precisa tomar a decisão.
Uma sombra passou em seu lindo rostinho.
- Mas eu já decidi que é isto que eu quero. Só o que eu que¬ro desde... desde que aconteceu... é ter minha vida de volta.
Eu balancei a cabeça.
- Não, Heather - disse então. - Você não entendeu o que eu estou dizendo. Você nunca vai ter de volta a sua vida, a sua velha vida. Mas pode começar uma outra. E ela só poderá ser melhor do que isto, do que ficar por aí para sempre sozi¬nha, vagando enfurecida, machucando as pessoas...
Ela gritou:
- Você disse que eu poderia ter minha vida de volta! Naquele instante eu me dei conta de que ela estava per¬dida.
- Eu não estava querendo dizer a sua antiga vida. Quis dizer uma vida...
Mas já era tarde demais. Ela estava surtando.
Agora eu estava entendendo por que os pais do Bryce o haviam mandado para Antígua. E até eu gostaria de estar lá - ou em qualquer outro lugar, desde que fosse longe da ira daquela garota.
Você disse - gritava ela -, você disse que eu podia ter de volta a minha vida! Você mentiu para mim!
Heather, eu não menti! Só estava querendo dizer que a sua vida... bem, a sua vida acabou. Heather, você mesma acabou com ela. Eu sei que é uma droga, mas, puxa, você devia ter pensado nisso.
Ela me interrompeu com um gemido meio... sobrena¬tural, claro.
Não vou permitir... Não vou deixar você tomar a mi¬nha vida! - berrou.
Heather, eu já lhe disse, não estou tentando tirar a sua vida. Eu tenho a minha própria vida. Não preciso da sua...
Com os grilos e os pássaros calados, o som da água borbulhando na fonte a poucos passos dali era o único ruído no pátio - à parte os gritos da Heather, claro. Mas de repen¬te o som da água ficou estranho. Parecia que havia alguma coisa estalando. Olhei na direção da fonte e vi que estava saindo uma fumaça. Eu não teria estranhado tanto - afi¬nal, estava bem frio, e a temperatura da água podia estar mais quente que a do ar - se não tivesse visto uma enorme bolha rebentar de repente na superfície da água.
Foi aí que me dei conta. Ela estava fazendo a água fer¬ver. Estava fervendo a água com a força da sua fúria.
Heather - disse eu, sentada no banco. - Heather, ouça me. Você precisa se acalmar. Não podemos conversar com você assim...
Você... você disse... - e eu via com alarme que seus olhos estavam revirando para trás. - Que eu... que eu podia... começar de novo!
Tudo bem. Estava na hora de fazer alguma coisa. Eu não precisava ficar ali sentada naquele banco se era para ser sacudida com tanta força que quase fui jogada ao chão. Deu para sacar que era a hora de me levantar.
E foi o que fiz, bem depressa. Bem rápido, para não ser atingida pelo banco. Tão rápido que a Heather nem teria chance de perceber que eu ia derrubá-la com uma direita bem no queixo.
Para minha surpresa, no entanto, ela nem pareceu sen¬tir nada. Estava em outra. Em outra muito diferente. O mur¬ro não teve o menor efeito - só serviu para me deixar os dedos doendo. E é claro que pareceu deixá-la ainda mais furiosa, o que sempre ajuda quando estamos lidando com uma pessoa perturbada demais.
- Você vai se arrepender disto - proferiu ela numa voz cavernosa que não tinha nada a ver com seus gritinhos de líder da torcida.
De repente a água da fonte chegou ao ponto de ebulição, projetando ondas enormes para o lado de fora. Os jatos, que normalmente iam a uma altura de apenas um metro e pouco, de repente começaram a subir a até três, seis me¬tros, caindo de volta num verdadeiro caldeirão borbulhante e fervente. Todos os pássaros saíram voando das árvores ao mesmo tempo, formando momentaneamente uma nuvem que bloqueou a luz do luar.
Eu estava com uma estranha sensação de que a Heather estava falando sério. Pior ainda, tinha a sensação de que ela seria mesmo capaz. Não precisaria nem levantar um dedinho.
O que foi confirmado quando de repente a cabeça de Junipero Serra foi brutalmente arrancada do corpo da está¬tua. Exatamente. Simplesmente saltou longe, como se aque¬la sólida peça de bronze fosse na verdade de confeito. E sem o menor barulho. Por alguns instantes, ela ficou flutuando no ar, com sua expressão de suave compaixão transforma¬da, do estranho ângulo no qual pendia sobre o meu rosto, numa careta demoníaca. E, de repente, enquanto eu esta¬va ali completamente paralisada, vendo as luzes se refle¬tirem na bola de metal, ela caiu... e mergulhou na minha direção, zunindo tão depressa na noite que parecia até um cometa ou...
Eu nem tive tempo de pensar com que mais aquilo se parecia, pois uma fração de segundo depois uma coisa dura atingiu o meu estômago e me projetou no chão, onde eu fiquei, olhando para o céu estrelado. Que estava lindo. A noite estava tão escura, e as estrelas, tão frias e distantes, piscando...
- Levante-se - disse asperamente uma voz de homem no meu ouvido. - Pensei que você era boa nisso!
Alguma coisa explodiu no chão a menos de um palmo da minha bochecha. Virei o rosto e vi a cabeça de Junipero Serra rindo grotescamente para mim.
Quando vi, o Jesse estava tentando me botar de pé e me empurrando na direção da galeria.

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