quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 13

Minha intenção, naturalmente, era acordar cedo e telefonar ao padre Dominic para avisá-lo sobre a Heather. Mas de boas intenções o inferno está cheio e vai ver eu não presto mesmo para nada, pois só fui acordar com minha mãe me sacudindo, e àquela altura já eram sete e meia e minha carona já estava indo embora.
Ou pelo menos era o que eles achavam. Eles se atrasaram à beça quando o Soneca descobriu que tinha perdido as chaves do Rambler, de modo que deu tempo de eu me ar­rastar da cama e enfiar-me numa roupa qualquer - não me perguntem qual. Fui descendo a escada quase sem me agüentar, e parecia que alguém tinha batido várias vezes na minha cabeça com um saco de pedras enquanto o Mestre contava para todo mundo que a irmã Ernestine tinha avisa­do que se ele faltasse a mais uma formatura teria de repe­tir o ano.
Foi aí que eu lembrei que as chaves do Rambler estavam no bolso da minha jaqueta de couro desde a noite anterior.
Discretamente, fui subindo de novo a escada e fingi que tinha achado as chaves no patamar. O pessoal comemorou um pouco mas reclamou um bocado, pois o Soneca jurava que as tinha deixado penduradas no gancho da cozinha e não sabia como tinham ido parar no patamar.
- Deve ter sido o fantasma do Dave - disse o Dunga, olhando de soslaio para o Mestre, que ficou totalmente sem graça.
Então entramos no carro e fomos embora.
Claro que estávamos atrasados. Na Academia da Missão Junipero Serra, a formatura começa às 8 horas em ponto. Nós chegamos uns dois minutos depois. Nessa formatura, que dura mais ou menos quinze minutos antes do início das aulas, é feita a chamada e são lidas comunicações aos alunos, enfileirados separadamente por sexo, os garotos de um lado e as garotas de outro, como se fôssemos missionários quacres ou algo assim. Quando nós chegamos, claro que a formatura já tinha começado. Eu pretendia passar agacha­da direto para o gabinete do padre Dominic, mas evidentemente não tive a menor chance. Irmã Ernestine nos apa­nhou em cheio e nos fulminou com um olhar furibundo até que cada um de nós entrasse em forma. Eu não estava ligando muito para o que irmã Ernestine anotava a meu respeito em seu caderninho negro, mas percebi que seria impossível chegar ao gabinete do diretor, por causa das fitas isolantes amarelas que impediam a passagem pelos arcos ao redor do pátio - e, naturalmente, por causa de todos aqueles guardas que estavam lá.
Só posso deduzir que todos os padres e freiras e o pes­soal todo se levantou para as matinas, que é como eles chamam a primeira missa da manhã, e deram lá fora com a estátua do fundador da igreja sem cabeça, a fonte quase sem água nenhuma, o banco onde eu estivera sentada com­pletamente retorcido e revirado e a porta da sala de aula do professor Walden em pandarecos.
Compreensivelmente, eles surtaram e chamaram a polí­cia. O pessoal de uniforme estava por toda parte, colhen­do impressões digitais e tirando medidas, como a distância que a cabeça de Junipero Serra percorrera e a velocidade em que precisava ter voado para fazer tantos buracos numa por­ta feita de madeira com espessura de sete centímetros, e coisas assim. Eu vi um sujeito metido num jaquetão de cou­ro azul-marinho conversando com o padre Dominic, que parecia mesmo muito, mas muito cansado. Não consegui que ele me visse, e concluí que teria de esperar o fim da for­matura para sair de fininho e me desculpar com ele.
Na formatura, a irmã Ernestine, que era a vice-diretora, disse que aquilo tinha sido feito por vândalos. Um bando de vândalos tinha invadido a sala de aula do professor Walden e cometido aquele desatino todo na escola. Felizmente, acrescentou, o cálice e a bandeja de ouro maciço usados para o vinho e as hóstias do sacramento não tinham sido roubados e continuavam em seu devido lugar no altar da igreja. Os vândalos tinham decapitado violentamente o fundador do nosso colégio, mas deixaram em paz o que era realmente valioso. Se algum de nós soubesse alguma coisa sobre aquela terrível violência, deveria informar imedia­tamente. E se não nos sentíssemos à vontade para fazê-lo pessoalmente, poderíamos informar anonimamente - monsenhor Constantine estaria ouvindo confissões duran­te toda a manhã.
Corta essa... Não era culpa minha se a Heather tinha ensandecido completamente. Nada disso. Se alguém tinha que se confessar era ela.
Ali na formatura eu estava bem atrás da Cee Cee que mal conseguia esconder sua felicidade com o que tinha acontecido; dava até para ver a manchete se formando em sua mente: "Vândalos arrancam a cabeça do padre Serra". Estiquei um pouco o pescoço para tentar ver os veteranos. E se o Bryce estivesse lá? Eu não estava conseguindo vê-lo. Talvez o padre Dom já tivesse falado com ele e ele tivesse voltado para casa. Ele não podia deixar de ter visto que aquele estrago todo ali no pátio decorria de muita agitação espiritual, e não humana. E eu esperava que o padre Dom não tivesse recorrido aos piolhos.
Tudo bem, era mais em mim do que no Bryce que eu es­tava pensando. Eu queria muito que o nosso encontro de sábado desse certo, e não que fosse cancelado por causa de piolhos. Por acaso é algum crime? Não é possível que uma garota comum tenha de passar o tempo todo enfrentan­do distúrbios psíquicos. Um pouquinho de romance também não faz mal nenhum.
Mas é claro que assim que a formatura acabou e eu ten­tei me encaminhar depressinha para o gabinete do padre Dom, a irmã Ernestine me apanhou com a boca na botija, no exato momento em que eu tentava passar por baixo de uma das fitas amarelas, e foi dizendo:
- Espera aí um pouquinho, senhorita Simon. Talvez lá em Nova York as pessoas possam ignorar fitas de isolamento da polícia, mas aqui na Califórnia não é nada recomendável.
Eu me endireitei. Quase tinha conseguido... Fiquei pen­sando umas coisas nada agradáveis sobre a irmã Ernestine, mas consegui dizer educadamente:
Puxa, irmã, sinto muito. É que eu preciso chegar ao gabinete do padre Dominic.
O padre Dominic - disse friamente irmã Ernestine - está muito ocupado esta manhã. Ele está reunido com os policiais por causa do lamentável incidente da noite passa­da. Não vai poder falar com ninguém mais pelo menos até depois do almoço.
Eu sei que provavelmente não é certo ficar pensando em dar um golpe de caratê no pescoço de uma freira, mas não conseguia me impedir. Ela estava me deixando nervosa.
- Deixa eu lhe dizer uma coisa, irmã - continuei. - O padre Dominic pediu que eu viesse falar com ele hoje de manhã. Ele quer ver uns... uns documentos que eu trouxe da minha antiga escola. Eu tive de pedir que mandassem esses documentos por correio especial lá de Nova York, e eles acabam de chegar...
Fiquei achando que tinha reagido com incrível rapidez mental, inventando aquela história de documentos e cor­reio especial, mas a irmã Ernestine esticou o braço e disse:
- Entregue-os a mim e eu os faço chegar ao padre. Droga!
- É... - disse eu, recuando. - Pode deixar. Acho que eu vou... vou então falar com ele depois do almoço.
Irmã Ernestine me olhou com um jeito de "eu sabia" e voltou sua atenção para o inocente garoto que caíra na besteira de ir ao colégio de jeans, uma falta imperdoável. O guri tentou se justificar humildemente, dizendo que eram as únicas calças limpas que tinha naquele dia, mas a irmã Ernestine ficou firme. Firme, infelizmente, no exato lugar por onde eu poderia passar a caminho do gabinete do di­retor, tratando de anotar a falta do aluno.
Eu não tinha outra opção senão ir para a sala de aula. Afinal, que poderia dizer ao padre Dominic que ele já não soubesse? Eu tinha certeza de que ele sabia que a Heather é que tinha devastado o colégio, e que eu tinha quebrado a janela da sala do professor Walden. Provavelmente ele nem ia estar assim tão satisfeito comigo, logo, por que me preocupar? O que eu devia estar fazendo mesmo era tratar de fazer com que ele esquecesse de mim.
A não ser que... onde andaria a Heather?
Pelo que eu podia imaginar, ela ainda devia estar se recuperando de sua fúria assassina da noite anterior. Não vi qualquer sinal dela quando me encaminhei para a sala de aula do professor Walden para o primeiro período, o que era bom sinal: significava que o padre Dominic e eu teríamos tem­po para fazer algum plano antes que ela voltasse a atacar.
Enquanto assistia à aula tentando me convencer de que tudo ia dar certo, eu não podia deixar de sentir uma certa pena do professor Walden. Ele estava com a porta da sua sala razoavelmente destruída. Até que nem parecia estar se importando tanto com a janela quebrada. Claro que todo mundo no colégio estava comentando o que havia acon­tecido. As pessoas estavam dizendo que a decapitação de Junipero Serra tinha sido uma piada de mau gosto. Mas uma piada e tanto. Uma vez, há alguns anos, contara-me Cee Cee, os veteranos tinham amarrado travesseiros nos badalos dos sinos da igreja, de modo que quando foram to­cados só saiu um ridículo som abafado. Acho que as pes­soas ficaram achando que era uma gracinha do mesmo gênero.
Se eles soubessem a verdade... O lugar da Heather, ao lado da Kelly Prescott, continuava vazio, enquanto o seu armário - que agora era meu - ainda não podia ser usado por causa do amassão provocado pelo impacto do seu corpo.
Não deixou de ser irônico que, enquanto eu estava pen­sando exatamente nisto, a Kelly levantasse o braço e, rece­bendo autorização do professor Walden para falar, pergun­tasse se ele não achava injusto que monsenhor Constantine decidisse que não haveria nenhum serviço religioso em memória da Heather.
O professor Walden recostou-se na cadeira e pôs os pés em cima da mesa. E tratou de tirar o corpo fora:
Não pergunte a mim. Eu só trabalho aqui.
Mas o senhor não acha que é injusto? - insistiu a Kelly, voltando-se para o resto da turma com seus enormes cílios cheios de rímel piscando muito. - A Heather freqüentou este colégio durante dez anos. Não dá para entender que ela não possa ser homenageada em seu próprio colégio. E para dizer a verdade eu acho que o que aconteceu ontem foi um sinal...
O professor Walden parecia estar se divertindo horrores:
Um sinal, Kelly?
Exatamente. Tenho certeza de que o que aconteceu aqui ontem à noite, inclusive aquela tora de madeira que quase matou o Bryce, tem ligação. Não acho mesmo que a estátua do padre Serra tenha sido depredada por vândalos, e sim por anjos. Anjos que estão muito danados com o fato de monsenhor Constantine não permitir que os pais da Heather realizem seu funeral aqui.
A turma toda começou a cochichar. As pessoas ficavam olhando nervosas para o lugar vazio da Heather. Geralmente eu não falo muito no colégio, mas aquela eu não podia deixar passar. Disse então:
- Você está dizendo então que foi um anjo que quebrou esta janela aqui atrás de mim, Kelly?
Ela precisou virar-se para me ver:
Bem... - fez ela. - Pode ter sido...
Certo. E você acha que foram anjos que arrombaram a porta da sala, arrancaram a cabeça da estátua e arrasaram o pátio?
Kelly esticou o queixo para a frente.
- Sim - disse. - Acho sim. Foram anjos inconformados com a decisão de monsenhor Constantine de não permitir que a gente homenageie a Heather.
Eu balancei a cabeça.
- Besteira - disse.
Kelly levantou as sobrancelhas:
Como?!
Besteira, Kelly. Acho que a sua teoria é pura besteira. A Kelly adquiriu uma coloração avermelhada das mais interessantes. Acho que ela provavelmente estava lamen­tando ter-me convidado para a festa na piscina.
Você não pode ter certeza de que não foram anjos, Suze - disse ela toda azeda.
Na verdade posso, pois pelo que sei anjos não san­gram, e o carpete estava cheio de sangue desde o lugar on­de o vândalo se cortou ao arrombar a janela até aqui. Foi por isto que a polícia cortou pedaços do carpete para exa­miná-los.
A Kelly não foi a única a engolir em seco. Todo mundo meio que surtou. Provavelmente eu não devia ter falado do sangue, ainda mais porque era meu, mas não podia deixar que ela ficasse dizendo que era tudo por causa dos anjos. Anjos uma droga. O que ela estava pensando? Que estava no cinema?
- Muito bem, muito bem - interrompeu o professor Walden. - Agora, pessoal, está na hora do segundo perío­do. Suzannah, posso falar com você um instantinho?
Cee Cee virou-se para ficar abanando aqueles cílios dela na minha direção.
- Agora chegou a sua vez, otária - disse.
Mas ela nem estava sabendo como podia estar certa. Bastava que qualquer um desse uma olhada nos band-aids que estavam no meu pulso, e ficaria sabendo que eu sabia por experiência própria de onde vinha aquele sangue.
Por outro lado, ninguém podia ter algum motivo para suspeitar de mim, confere?
Fui me aproximando da mesa do professor Walden com o coração na boca. Ele vai te entregar, pensei, furiosa. Você é uma negação, Suzannah.
Mas o professor Walden só queria me cumprimentar pelas notas de pé de página da minha redação sobre a bata­lha de Bladensburgo, que ele havia notado quando eu a en­treguei.
Ah... - disse eu. - Não é nada demais, professor.
Sim, mas notas de pé de página... - suspirou ele. - Desde que eu dava aulas para adultos na escola comuni­tária, nunca mais tinha voltado a ver notas de pé de pági­na serem usadas corretamente. Realmente, você fez um excelente trabalho.
Eu balbuciei um modesto obrigado. Eles não precisavam ficar sabendo que eu entendia tanto da batalha de Bladensburg porque uma vez tinha ajudado um veterano da guer­ra a levar dois antepassados dele até o local onde fora en­terrado um saco de dinheiro que ele deixara cair na luta. Podem ser mesmo bem engraçadas as coisas que ficam impedindo as pessoas de seguirem com sua vida... ou melhor, com sua morte.
Eu estava quase dizendo ao professor Walden que gostaria muito, em condições normais, de ficar batendo um bom papo sobre grandes batalhas americanas, mas que tinha de ir (eu ia ver se a irmã Ernestine ainda estava montando guarda no caminho para o gabinete do padre Dom), quan­do ele me deteve com estas simples palavras:
- É engraçado, realmente, que a Kelly tenha se referido daquela maneira à Heather, Suzannah.
Eu olhei para ele desconfiada:
Ah, é? Como assim?
Bem, não sei se você sabia, mas a Heather era vice-presidente da turma dos segundanistas, e agora que não a temos mais aqui eu estou recolhendo indicações para o cargo. E acredite ou não, você foi indicada. Doze vezes por enquanto.
Meus olhos devem ter saltado da órbita. Esqueci com­pletamente que eu tinha de me arrancar dali para ir falar com o padre Dominic.
- Doze vezes?!
- Sim, é estranho, não é mesmo? Eu não conseguia acreditar.
Mas eu só estou aqui há um dia!
O fato é que você causou uma forte impressão. Eu mesmo me arriscaria a dizer que você não fez exatamente inimigos ontem quando ameaçou quebrar os dedos da Debbie Mancuso depois da aula. Ela não é das colegas mais queridas...
Eu fiquei olhando para ele. Quer dizer então que o pro­fessor Walden realmente tinha ouvido a minha ameaça. O fato de ele ter ouvido e não me ter mandado direto para o castigo me fez admirá-lo de uma maneira que nenhum pro­fessor antes havia merecido.
E acho também que o fato de você ter empurrado o Bryce Martinson quando aquela tora de madeira vinha na direção dele também deve ter ajudado um pouco - acres­centou.
Uau! - fiz eu.
Provavelmente nem preciso lembrar aqui que na minha antiga escola eu não era certamente aquela que ganhava os concursos de popularidade. Eu nem me dava ao trabalho de me oferecer para ser líder de torcida ou madrinha do time. Mesmo considerando que na minha escola antiga ser líder de torcida era considerado uma enorme perda de tem­po e que no Brooklyn não é exatamente um elogio ser cha­mada de madrinha de alguma coisa, o fato é que eu nun­ca teria conseguido ser qualquer das duas coisas. E ninguém - mas ninguém mesmo - nunca tinha me indicado antes para o que quer que fosse.
Eu estava orgulhosa demais para seguir meu instinto, que me dizia: agradeça, mas diga que não, e saia correndo.
- Bem... - comecei. - Quais são as obrigações do vice- presidente?
O professor Walden explicou:
- Ajudar o presidente a decidir como gastar a verba da turma, principalmente. Não é muita coisa, um pouco mais de três mil dólares. A Kelly e a Heather estavam planejan­do promover uma festa no Carmel Inn, mas...
Três mil dólares!? - repeti, provavelmente com o queixo caído.
É, eu sei que não é muito...
E a gente pode gastar como quiser? - Minha mente estava girando. - Quer dizer que se a gente quisesse fazer uma série de festinhas na praia poderíamos?
O professor Walden me olhou com curiosidade.
- Claro. Mas o resto da turma precisa aprovar. Desconfio que pode estar rolando na administração um papo sobre usar o dinheiro da turma para consertar a estátua do padre Serra, mas...
O que quer que o professor Walden fosse acrescentar, no entanto, não conseguiu. A Cee Cee voltou correndo para a sala, os olhos muito arregalados por trás das lentes de seus óculos de vidro colorido:
- Venham, venham depressa! - berrava ela. - Aconteceu um acidente! O padre Dominic e o Bryce...
Eu saí correndo feito uma bala:
O quê? - perguntei, com muito mais ênfase do que seria desejável. - Que aconteceu com eles?
Acho que estão mortos!

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