quinta-feira, 14 de abril de 2011

A mediadora - "A terra das Sombras" - Capitulo 19

Pouco depois o telefone tocou. Dunga gritou lá de cima que era para mim. Ao atender, ouvi a Cee Cee berrando do outro lado da linha:
Sra. vice-presidente - dizia ela -, sra. vice-presidente, alguma coisa a declarar?
Não - respondi -, e que história é essa de vice-presi­denta?
Você ganhou a eleição.
Por trás da voz dela eu ouvia o Adam dizendo "Parabéns!".
Que eleição? - perguntei, desconcertada.
Para vice-presidente! - Cee Cee parecia chateada. - Eehhh...
E como é que eu posso ter ganho se nem estava lá?
Não tem importância. Você recebeu dois terços dos votos dos segundanistas.
Dois terços? - Tenho de reconhecer que fiquei choca­da. - Mas Cee Cee, por que é que essa gente toda votou em mim? Eles nem me conhecem. Eu sou a novata do colégio.
Que que eu posso fazer? - perguntou Cee Cee. - Você parece uma líder nata.
Mas...
E provavelmente o fato de ser de Nova York não atra­palhou nem um pouquinho, pois aqui todo mundo é fasci­nado com qualquer coisa que seja de Nova York.
Mas...
E além do mais você fala tão depressa...
Falo?
Claro que fala, o que faz você ficar parecendo tão inteligente... Quer dizer, eu realmente acho que você é inteligente, mas você também fica parecendo por falar tão rápido. E você usa tanta roupa preta... E como sabe, preto é superchique.
Mas...
E ainda por cima o fato de você ter salvo o Bryce daque­la tora de madeira... As pessoas acham o máximo esse tipo de coisa.
Eu fiquei pensando que provavelmente dois terços dos segundanistas do Colégio da Missão votariam no coelhinho da páscoa se alguém tivesse tido a idéia de inscrevê-lo como candidato. Mas não cheguei a dizer. Em vez disso, disse:
Bem. Legal, acho eu.
Legal? - fez a Cee Cee, parecendo surpresa. - Legal? É só o que você tem a dizer? Você já parou para pensar como vamos nos divertir com todo esse dinheiro? As coisas legais que vamos poder fazer?
Acho mesmo... genial - respondi.
Genial? Suze, é simplesmente sensacional! Vamos ter um semestre simplesmente sen-sa-cio-nal! Estou tão orgu­lhosa de você!
Desliguei o telefone me sentindo meio zonza. Não é todo dia que alguém é eleito vice-presidente de uma turma que está freqüentando há menos de uma semana.
Mal tinha acabado de pôr o telefone no gancho quan­do ele voltou a tocar. Dessa vez era uma voz de garota que eu não reconheci, pedindo para falar com a Suze Simon.
Falando - respondi, e a Kelly berrou no meu ouvido.
Minha nossa! - gritou ela. - Você ficou sabendo? Não está elétrica? Vamos ter um ano do barulho!
Do barulho. Certo. Calmamente, eu respondi:
Estou louca para trabalhar com você.
Olha só - disse a Kelly, de repente falando sério. - Temos de nos encontrar logo para escolher a música.
Que música?
Para a festa, ué. - Dava para ouvir que ela estava folheando um fichário. - Eu até já sei de um DJ. Ele me en­viou uma lista de músicas, e nós só precisamos escolher. Que tal amanhã de noite? Que está acontecendo com você? Você nem foi à aula hoje. Está pensando que tem alguma doença contagiosa?
Eu respondi:
- Hmm, não... Olha, Kelly, sobre essa festa, não sei não... Estava pensando que talvez fosse melhor gastar o dinheiro... bem, quem sabe um piquenique na praia...
Ela repetiu, num tom de voz completamente morno:
Um piquenique na praia.
Claro. Com vôlei, fogueira para churrasco e tudo mais. - Eu comecei a enrolar o fio do telefone no dedo. - Depois que conseguirmos a cerimônia de homenagem à Heather, naturalmente.
Cerimônia?
A cerimônia fúnebre. Veja bem: aposto que você já re­servou o salão do Carmel Inn para a festa, confere? Só que em vez de dar uma festa, eu acho que devíamos organizar uma cerimônia de homenagem à Heather. Eu realmente acho que ela gostaria que fosse assim.
Kelly continuava com aquela voz de pasmaceira:
Mas você nem chegou a conhecer a Heather.
Bem, tem razão - respondi. - Mas tenho a sensação de que sei muito bem que tipo de garota ela era. E tenho certeza de que uma cerimônia fúnebre no Carmel Inn é exatamente o que ela gostaria.
Kelly ficou um minuto sem dizer nada. Já tinha me ocor­rido que ela podia não gostar das minhas sugestões, mas ela não ia poder mesmo fazer nada. Afinal, a vice-presidenta era eu. E ninguém tinha o direito de pedir o meu impeachment, a não ser que eu fosse expulsa do colégio.
Como ela não respondia, eu disse:
- Bom, por enquanto você não precisa se preocupar, Kell. Ah, sim, sobre a sua festa no sábado, eu também convidei a Cee Cee e o Adam, espero que você não se importe. É es­tranho, mas eles disseram que não foram convidados. Só que numa turma pequena como a nossa, não pega bem não convidar todo mundo, entende? Caso contrário, as pessoas que não foram convidadas vão pensar que você não gosta delas. Mas é claro que no caso da Cee Cee e do Adam você apenas esqueceu, confere?
Você ficou maluca? - fez a Kelly. Preferi ignorar:
Até amanhã, então - limitei-me a dizer.
Minutos depois, o telefone voltou a tocar. Eu mesma atendi, pois parecia que tudo estava dando certo para mim. E estava mesmo. Era o padre Dominic.
Suzannah - foi ele dizendo, naquela voz grave tão agradável. - Espero que não se importe por eu estar ligando para sua casa. Mas liguei só para cumprimentá-la por ter vencido a eleição na turma dos segundanistas...
Não precisa se preocupar, padre Dom - disse eu. - Não tem ninguém na extensão. Só eu.
Mas o que é que você tinha na cabeça? - perguntou ele, num tom de voz completamente diferente. - Você me prometeu! Você me prometeu que não ia voltar ao colégio!
Sinto muito - respondi. - Mas ela estava ameaçando machucar o David, e eu...
Não quero saber nem se ela estava ameaçando a sua mãe, mocinha. Da próxima vez terá de esperar por mim.
Está entendendo? Nunca mais vai tentar fazer uma coisa tão imprudente e arriscada como um exorcismo sem uma alma que possa ajudá-la! Eu respondi:
Está bem. Mas eu estava esperando mais ou menos que não fosse haver uma próxima vez.
Não fosse haver uma próxima vez? Você perdeu o juí­zo? Esqueceu que somos mediadores? Enquanto houver es­píritos, continuará havendo sempre uma próxima vez para nós, mocinha, e não se esqueça disso.
Como se eu pudesse. Bastava olhar ao redor da minha cama a qualquer hora do dia ou da noite para dar de cara com o lembrete, na forma de um caubói assassinado.
Mas achei que não fazia sentido contar isto ao padre Dominic. Disse então:
Lamento pela galeria, padre Dominic. Seus pobres pas­sarinhos...
Não se preocupe com os meus passarinhos. O que in­teressa é que você está bem. Quando eu sair desse hospital, vamos ter uma longa conversa, Suzannah, sobre técnicas adequadas de mediação. Nunca ouvi falar desse seu hábito de sair por aí esmurrando a cara dessas pobres almas pe­nadas.
Eu achei graça:
Tudo bem. Suas costelas devem estar doendo, não?
Estão mesmo, algumas. Mas como você sabe? - per­guntou ele, com voz macia.
Porque o senhor está sendo tão amável...
Oh, desculpe... - fez ele, realmente parecendo sentido. - É que... minhas costas realmente estão doendo. Mas você soube da notícia?
Qual delas? Que eu fui eleita vice-presidente dos segundanistas ou que quase derrubei o colégio ontem à noite?
Nenhuma das duas. Encontraram uma vaga para o Bryce no Colégio Robert Louis Stevenson. Ele será trans­ferido assim que voltar a andar.
Mas... - Podia parecer ridículo, mas fiquei triste com aquela notícia. - Mas agora a Heather se foi. Ele não pre­cisa ser transferido.
A Heather pode ter ido embora - respondeu padre Dominic educadamente -, mas sua lembrança ainda está muito vivida para os que foram... digamos, afetados por sua morte. Você não vai querer criticar o rapaz por querer uma oportunidade de começar de novo num colégio onde as pessoas não estejam cochichando sobre ele.
Está certo - disse eu, meio de má vontade, pensando na cabeleira loura do Bryce.
Os médicos estão dizendo que eu vou poder voltar a trabalhar na segunda-feira. Gostaria que você viesse ao meu gabinete.
Está certo - repeti, com o mesmo entusiasmo de antes. Padre Dominic nem pareceu ter percebido.
Então nos vemos lá - disse ele, e acrescentou, pouco antes de eu desligar: - Enquanto isto, Suzannah, tente não destruir o que restou do colégio, está bem?
Ha, ha - fiz eu, e desliguei.
Sentada no assento da janela, encostei o queixo nos joelhos e fiquei olhando para o vale lá embaixo e a cur­va da baía. O sol começava a se pôr a oeste. Ainda não tinha encostado na água, mas não demoraria a fazê-lo. Meu quarto estava todo vermelho e dourado e, ao redor do sol, o céu parecia todo listrado. As nuvens tinham tan­tas cores - azul, roxo, vermelho, laranja - quanto as fitas que certa vez eu vira flutuando ao vento no alto de um poste numa quermesse. Como a janela estava aberta, eu também sentia o cheiro do mar. A brisa trazia até mim aquele cheiro salgado, mesmo no alto da colina onde eu me encontrava.
Fiquei me perguntando se o Jesse também costumava sentar-se naquela janela para sentir o cheiro do mar antes de morrer. Antes que o amante de Maria de Silva, Felix Diego, entrasse no quarto e o matasse, como eu estava cer­ta de que havia acontecido.
Como se estivesse ouvindo meus pensamentos, Jesse de repente materializou-se a alguns passos de mim.
- Caramba! - exclamei, apertando uma mão contra o coração, que começou a bater tão rápido que eu achei que podia explodir. - Você precisa mesmo ficar fazendo isto?
Ele estava recostado, como quem não quer nada, numa das vigas da minha cama, com os braços cruzados.
Sinto muito - disse então, sem parecer que estava sentin­do coisa nenhuma.
Olhe aqui - fui dizendo. - Se nós dois vamos continuar convivendo, por assim dizer, precisamos estabelecer certas regras. E a regra número um é que você precisa parar de fi­car me assombrando desse jeito.
E como você sugere que eu torne minha presença conhe­cida? - perguntou Jesse, com os olhos brilhando um boca­do para um fantasma.
Não sei - respondi. - Você não pode sacudir umas correntes ou algo assim?
Ele balançou a cabeça.
Acho que não. E qual seria a regra número dois?
Regra número dois... - e a minha voz parecia não estar saindo direito enquanto eu ficava olhando para ele. Não era justo. Não era mesmo. Os mortos não deviam ter aque­la pinta toda do Jesse, recostado ali na minha cama com o sol entrando de lado e ressaltando suas feições perfeitas...
Ele levantou a sobrancelha, aquela que tinha a ferida.
- Algo errado, mi hermosa? - perguntou.
Fiquei olhando para ele. Era evidente que ele não sabia que eu sabia. Sobre as iniciais MDS. Eu queria perguntar-lhe a respeito, mas ao mesmo tempo parecia que não que­ria. Alguma coisa estava prendendo o Jesse neste mundo, alguma coisa o impedia de ir para o mundo que o espera­va e eu tinha a sensação de que tinha a ver com a maneira como ele perdeu a vida. Mas como ele não parecia fazer tanta questão de falar a respeito, fiquei achando que não tinha nada a ver com isso.
Isto era completamente inédito. Quase sempre, os fan­tasmas estavam o tempo todo em cima de mim imploran­do que eu os ajudasse. Mas não Jesse.
Pelo menos até agora.
Quero te perguntar uma coisa - disse ele, tão de repen­te que eu cheguei a pensar que ele podia ter lido os meus pensamentos.
O quê? - perguntei, deixando de lado a revista e levantando.
Ontem à noite, quando você me disse para não me aproximar do colégio porque ia fazer um exorcismo...
Eu olhei para ele:
- Sim?...
- Por que me deu este aviso? Eu ri aliviada. Era só aquilo?
Eu avisei porque se você fosse lá teria sido sugado como a Heather.
Mas não seria a melhor maneira de se livrar de mim? Você ficaria com este quarto só para você, exatamente como quer.
Fiquei olhando para ele horrorizada.
Mas isto... isto seria totalmente errado. Agora ele estava sorrindo.
Entendo. Contrário às regras?
Isso mesmo - respondi.
- Quer dizer então que você não me convocou - e ele deu um passo em minha direção - porque está começando a gostar de mim ou algo assim?
Para cúmulo do desânimo, senti que meu rosto começa­va a se esbrasear.
- Não - respondi, teimosa. - Nada disso. Só estou tentan­do respeitar as regras. Que, por sinal, você violou ao acor­dar o David.
Jesse deu mais um passo na minha direção.
- Eu não podia deixar de acordá-lo. Você tinha dito para eu não ir até o colégio. Eu não tinha outra escolha. Se não tivesse mandado o seu irmão para ajudá-la, você agora estaria mortinha.
Infelizmente sabia que ele estava certo. Mas é claro que eu não ia reconhecer.
Absolutamente - fui dizendo. - Eu estava com tudo perfeitamente sob controle. Eu...
Você não estava controlando nada - riu-se o Jesse. - Você foi até lá empurrando com a barriga, sem ter planejado nada, sem...
Eu tinha um plano - respondi, furiosa, dando um pas­so em direção a ele, o que nos deixou de repente quase en­costando no nariz um do outro. - Quem você pensa que é, para estar aí dizendo que eu não tinha nenhum plano? Estou acostumada a fazer isto há anos, sabia? Anos! E nun­ca precisei da ajuda de ninguém. E muito menos de alguém como você.
De repente ele parou de rir. Agora parecia zangado.
Alguém como eu? Como assim? Do que foi mesmo que você me chamou? De caubói?
Não - disse eu. - Estou querendo dizer de alguém morto.
Jesse vacilou, como se eu lhe tivesse dado um murro.
A partir de agora vamos combinar assim - fui dizen­do. - A regra número dois fica sendo que você não se mete no que é meu e eu não me meto no que é seu.
Boa - respondeu ele, curto e grosso.
Boa - fiz eu. - E muito obrigada.
Ele ainda estava zangado. E perguntou, de má vontade:
Por quê?
Por ter salvado a minha vida.
De repente, ele já não parecia zangado. Suas sobrance­lhas, que estavam completamente franzidas, relaxaram.
Quando eu vi, ele tinha esticado os braços e pôs as mãos nos meus ombros.
Aposto que eu não teria sido apanhada de surpresa daque­le jeito se ele tivesse enfiado um garfo em mim. O fato é que estou acostumada a esmurrar fantasmas, mas não estou acos­tumada a vê-los olharem para mim como se... como se...
Bem, como se fossem me beijar.
Mas antes que eu tivesse tempo de pensar no que ia fa­zer - fechar os olhos e deixar que ele fosse em frente ou aplicar a regra número três: proibido qualquer contato físi­co - a voz da minha mãe veio lá de baixo.
- Suzannah! - chamou ela. - Suzinha, sou eu, estou em casa!
Eu olhei para o Jesse. Ele imediatamente tirou as mãos de mim. Um segundo depois, minha mãe abriu a porta do quarto e o Jesse desapareceu.
- Suzinha - foi dizendo ela, aproximando-se e me abraçando. - Como estão as coisas? Espero que não tenha ficado aborrecida porque deixamos você dormir. Você parecia tão cansada...
Não - respondi, ainda meio tonta pelo que tinha acon­tecido com o Jesse. - Não faz mal.
Parece que você acabou não agüentando. Era mesmo de se esperar. Correu tudo bem aqui com o Andy? Ele disse que preparou almoço para você.
Ele preparou um excelente almoço - respondi feito um robô.
E o David trouxe o seu dever de casa, pelo que fiquei sabendo - prosseguiu ela, afastando-se de mim e caminhando em direção ao assento da janela. - Estávamos pensando em preparar um espaguete para o jantar. Que acha?
Parece ótimo - disse eu, voltando a mim e vendo que ela estava olhando para fora da janela. Logo em seguida dei-me conta de que não lembrava jamais tê-la visto tão... tão serena.
Talvez fosse porque ela tinha parado de tomar café quan­do nos mudamos para a Califórnia.
Mas era mais provável mesmo que fosse amor.
O que está olhando, mãe? - perguntei.
Nada, meu amor - respondeu ela com um sorrisinho. - É só o pôr-do-sol. É tão lindo! - Ela virou-se para passar o braço em volta do meu ombro, e lá ficamos as duas ob­servando enquanto o sol mergulhava no Pacífico em meio àquele violento festival de vermelhos, roxos e dourados. - Quem disse que a gente poderia ver um pôr-do-sol assim lá em Nova York? Não é mesmo?
Tem razão - respondi.
Então - disse ela, dando-me um apertão. - O que acha? Acha então que podemos ficar por aqui um tempo?
Claro que ela estava brincando. Mas de certa maneira não estava.
- Claro - respondi. - Vamos ficar aqui.
Ela sorriu para mim e voltou a olhar para o pôr-do-sol. O último pedacinho da enorme rodela de fogo estava desa­parecendo no horizonte.
Lá vai o sol - disse ela.
Eu já sei, tá legal - completei.

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